A posição clássica e ortodoxa é afirmar que “toda a Escritura
é inspirada por Deus e útil para o ensino...”. Por “toda a Escritura” os
protestantes e os que neles tem alguma raiz histórica e/ou teológica (batistas,
metodistas, pentecostais) vão afirmar tratar-se de todos os livros que fazem
parte do cânon bíblico aceito pelas igrejas chamadas de “evangélicas”. Já para
os católicos, para os que creem na inspiração plenária das Escrituras, muito
provavelmente acrescentarão os livros chamados de deutero-canônicos.
Há, no entanto, um senão nesta postura. Trata-se dos livros
dos Salmos e Lamentações de Jeremias. A análise criteriosa deles nos fará
perceber que, antes de serem palavra de Deus dirigida aos homens (tal como
ocorre nos profetas, por exemplo), trata-se de palavra humana dirigida a Deus.
A grande maioria dos Salmos são orações humanas dirigidas a
Deus na forma de pedido, lamentação, louvor, imprecação, etc. Não são strictu sensu Palavra de Deus, mas
palavra para Deus, ainda que haja trechos em que explicitamente se afirma ser
Deus falando. Da mesma forma as Lamentações de Jeremias. Trata-se de uma
coleção de orações, lamentos, falas de arrependimento, que nascem da boca do
profeta e são dirigidas a Deus.
A tomada
de consciência deste fator é de profunda importância, porque muitos há que,
lendo algo que era uma aspiração ou desejo do orador, o transformam em promessa
de Deus. Cito o Salmo 23: “O SENHOR é o meu pastor; nada me faltará. Ele
me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de
descanso; refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça por amor
do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei
mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. Preparas-me
uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me a cabeça com óleo; o meu
cálice transborda. Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os
dias da minha vida; e habitarei na Casa do SENHOR para todo o sempre.”
Note-se
que não há nele uma única menção a algo que Deus fala ou promete, antes é a
fala do salmista. É uma oração de confiança na provisão e cuidado divinos, mas
não é promessa de Deus de que ele fará o que ali está escrito. É um desejo
humano e não uma promessa divina.
De igual forma se deve tomar o Salmo 37. Não se
trata de promessas, mas de aspiração, de confiança. Neste caso, muito mais de
exortação à confiança no Senhor: “Não te indignes por causa dos malfeitores,
nem tenhas inveja dos que praticam a iniquidade. Pois eles dentro em breve
definharão como a relva e murcharão como a erva verde. Confia no SENHOR e
faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do SENHOR,
e ele satisfará os desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao
SENHOR, confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair a tua justiça como
a luz e o teu direito, como o sol ao meio-dia. Descansa no SENHOR e espera
nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa
do que leva a cabo os seus maus desígnios. Deixa a ira, abandona o furor;
não te impacientes; certamente, isso acabará mal. Porque os malfeitores
serão exterminados, mas os que esperam no SENHOR.”
Por não perceberem isto, muitos há que prometem o
que Deus não prometeu. Conheço muita gente que teve o Senhor como seu pastor,
mas que passou por dificuldades e não teve pastos verdejantes e nem água
tranquila. Outros que confiaram no Senhor e a Ele se entregaram e nem por isto
todos os seus desejos foram satisfeitos.
Marcos Inhauser