O modelo vigente nas igrejas por séculos é o da cátedra, onde há uma confissão de fé, aceita pela denominação como expressão final e definitiva das crenças e ensinamentos exarados nas Escrituras, ensinados domingo após domingo pelo catedrático (pregador). O pregador, no uso da palavra não interrompida e nunca questionada no momento em que é proferida, deve ser a repetição para consolidação dos ensinamentos confessionais.
O problema com este tipo de religiosidade é que o líder não pode pensar, não pode fazer teologia, porque a sua já está feita e consolidada na Confissão de Fé de sua denominação. Se ousa dizer algo fora do que preceitua o receituário doutrinal, será inquirido, processado eclesiasticamente poderá ser disciplinado por um período de suspensão ou afastamento definitivo. Eu passei por isto, juntamente com alguns outros colegas.
Ousamos pensar e criticar algo e fomos acusados por uma mente fundamentalista, quem, treinado na letra da lei, só via obediência e jamais podia aceitar o questionamento. Para estas confessionalidades, a pergunta inquisitiva e exploratória de novas possibilidades é pecado. Perguntar arguindo o estabelecido é pecado sem perdão. É atentar contra a sacralidade de um Manual Doutrinário que, não importa quando foi estabelecido, nem as circunstâncias históricas em que tal se deu, aceitam que as formulações ali contidas têm a aura da infalibilidade. Um amigo foi fazer um curso de teologia contemporânea dado por uma pessoa recém-chegada com o título de ThD (Doctor in Theology). Ele começou na patrística, foi até Calvino e terminou seu curso. Meu amigo o questionou sobre os teólogos contemporâneos e ele disse que, depois de Calvino, não houveram mais teólogos.
Falar o novo, pensar o diferente, perguntar sobre o estabelecido é garantia de ser rotulado como herege. Herege não é um título que alguém se dê a si mesmo. Encontrar-se-ão milhares dos que se afirmam ortodoxos, conservadores, fieis à Palavra, fundamentalistas. Mas alguém que, sem estar sendo irônico, se caracterize como herege, é algo raro, incomum mesmo. Herege é sempre o outro. Dizer que o outro é herege é um ato de exercício de um pretenso poder de julgar quem é quem e quem está certo ou errado. Neste processo muitos foram sacrificados pelos donos do poder eclesiástico, tanto nas inquisições, como nos tribunais eclesiásticos das igrejas não-católicas.
Se perguntar criticamente sobre a fé e a confissão é ser herege, devo admitir que o sou. Por estar em uma denominação, talvez a única no mundo, que se afirma como não-credal (não temos um credo) e não-confessional (não temos uma confissão de fé), não há lugar para ser herege no seio dela. Nela não há quem tenha a autoridade de dizer: “você está errado”. O máximo que podemos é discordar, dizendo: “eu não penso como você”. Posso até dar as razões pelas quais creio diferente, mas sem acusar ou discutir opiniões.
No seio desta denominação, por isto, se pratica a hermenêutica comunitária, onde todos podem e devem participar da interpretação do texto estudado naquele momento. É no exercício de todos os dons presentes na comunidade que se dá a interpretação consensual. Nela o perguntar é virtude, o discordar é maturidade, o afirmar o que se pensa é essencial.
Marcos Inhauser
Professor, pastor, teólogo e educador corporativo Textos escritos para a coluna semanal no Correio Popular, da cidade de Campinas e texto escritos depois de 2021, que tratam de temas nacionais, internacionais, sobre igreja e teologia
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quarta-feira, 26 de outubro de 2016
A HERESIA DO PERGUNTAR
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quarta-feira, 19 de outubro de 2016
FÉ? O QUE É ISTO?
Há enorme quantidade de gente que, perguntada sobre o que é a
fé, não hesitariam em responder com a afirmação constante no livro dos Hebreus:
“a fé é o firme fundamento das
coisas que se esperam, e a prova das coisas que se não veem” (Hb 11:1). No entanto, a definição
acima traz dificuldades intrínsecas, uma vez que só se aplica às coisas que se
esperam e às que se não veem. Interpretada a definição literalmente, não há fé
nas coisas passadas e nem nas que se veem.
Se ela só se aplica ao que se espera, como ter fé no Jesus
histórico que veio e que é fato do passado? Como crer nos relatos bíblicos da
libertação do povo de Deus do Egito, nas pragas, na passagem do Mar Vermelho e
outras narrativas do passado? Se são passado, já não são alvo de espera e se
não o são, não são objeto da fé.
Como fica a narrativa de Tomé que precisou ver para crer? “Se
eu não vir o sinal dos cravos nas suas mãos, e não meter o dedo no lugar dos
cravos, e não meter a minha mão no seu lado, de maneira nenhuma o crerei” (Jo
20:27).
Se olharmos para o Antigo Testamento e para as narrativas de
fé que ali se encontram, vamos perceber que não há nele um manual de crenças,
ou um compêndio de teologia conceitual. Antes, pelo contrário, vamos encontrar
uma coletânea de narrativas de fé de que Deus estava agindo na história a favor
do seu povo. Parece mais uma página de um diário de fé nos atos de Deus. Criam
no Deus da história que faz dela o seu palco revelacional. Deixar de ver nas
minúcias dos atos históricos concretos o agir de Deus é cegar-se à revelação.
Pasma-me que os púlpitos e os cânticos em moda nos templos
pouco ou nada façam desta leitura do agir de Deus na história hoje. Parece que
as prédicas ensinam um Deus que morreu no passado, ou em um Deus catatônico que
deixou de agir e está paralisado. Ficou mudo no dia em que, sábios teólogos
concluíram quais os livros que fazem parte do cânon e depois disto proibiram
Deus de continuar falando e se revelando.
Olham para o passado para encontrar histórias bonitas de como
Deus agiu, mas são cegos para o presente e para os atos de Deus na história
brasileira, latino americana e mundial do ano de 2016. O Deus mudo e catatônico
das modernas pregações se limita a curar enfermos, expulsar demônios e dar
prosperidade aos bispos de igrejas gananciosas.
Deus encolheu. Foi exuberante no passado, mas perdeu seu
brilho e vigência no século da tecnologia. Como discípulos devemos viver das
glórias do passado, ir aos templos que são museus a contar histórias antigas,
preservar a memória de um povo, e acreditar que um dia a glória será
restabelecida na mesma Jerusalém de antanho. Ele fazia milagres e hoje ... bem
.... hoje ... é diferente.
Mais que pregadores, deveriam ser “leitores da história”. Como
disse o Karl Barth, um bom pregador é o que tem a Bíblia em uma mão e o jornal
na outra. Um iluminando o outro. O jornal trazendo luzes para a leitura bíblica
e a Bíblia iluminando o entendimento dos acontecimentos atuais.
Um Deus fora da história é marionete nas mãos de pregadores
analfabetos e inescrupulosos.
Marcos Inhauser
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quarta-feira, 12 de outubro de 2016
SOMOS?
Na
narrativa bíblica se conta que Moisés teve o seguinte diálogo com Deus: “Moisés perguntou: Quando eu chegar diante dos israelitas e lhes disser:
O Deus dos seus antepassados me enviou a vocês, e eles me perguntarem: ‘Qual é
o nome dele? ’ Que lhes direi? Disse Deus a Moisés: Eu Sou o que Sou. É isto
que você dirá aos israelitas: Eu Sou me enviou a vocês" (Êxodo 3:13,14). A
expressão Eu-sou-o-que-sou só pode ser dita por Deus sobre si mesmo. Ninguém
mais pode afirmá-la.
Digo isto
porque, nós, humanos, não somos um “eu-puro”, um “eu-sou-eu-mesmo”. Somos, sim,
a somatória das obediências que prestamos a quem nos deu ordens e formou a
nossa forma de ser. Sou a somatória das ordens recebidas e para as quais não
tive poder de desobedecer.
Cada um de
nós tem algo de si mesmo, mas tem também um monte de coisas que os pais, a
família e a sociedade impuseram sobre nós. Ninguém pode dizer “eu-sou-eu
mesmo”, “eu-sou-só-eu”. Como já disse Ortega y Gasset, somos nós mesmos e o
contexto em fomos criados, as influências que recebemos.
Ainda que
haja no português e, mais especificamente no Brasil, a expressão
“e-sou-mais-eu”, ela não se refere ao grau de autonomia do eu, mas ao grau de
autoconfiança e autoestima que a pessoa tem.
Se somos
esta mistura de autonomia e heteronomia (a lei própria e a lei dos outros sobre
nós), ninguém pode se arvorar em ser completamente independente das pressões,
injunções, constrangimentos e obediências prestadas, ainda que de forma
inconsciente ou até mesmo consciente, as circunstâncias não permitem
desobedecer.
Assim, o
comportamento individual não é só um ato de volição autônomo, mas, antes, um
ato de obediência ou rebeldia. A obediência se dá quando o nível de poder não
permite outra coisa a fazer senão o que lhe pedem, ensinaram ou a sociedade
exige. O nível de desobediência se dá no exercício consciente da desobediência
pela avaliação de que se tem poder para enfrentar as consequências. Diante
disto, há mais “eu” nas rebeldias que nas obediências.
Isto posto,
digo que o conservador é um “ser-sem-opinião-própria” porque repete ad nausean o que lhe ensinaram e não tem
a mais mínima possibilidade, em função das coisas que lhe ensinaram e do poder
sobre ele exercido, de romper o círculo ideológico que o mantem preso. E quando
se trata de um “conservador-religioso” a coisa fica ainda mais complicada
porque o poder de quem ensinou as coisas que repete qual papagaio vieram com a
aura da infalibilidade, da Vox Dei, e afirmar algo diferente é pecado e
passível de condenação eterna. Pensar, refletir e se posicionar autonomamente é
desvio da fé, é ser herege, apóstata.
Fica assim
proibido o fazer perguntas ao texto sagrado, seja ele Bíblia, Alcorão, Bhagavad
gita ou algo assemelhado. Os dissidentes (os que pensam e tem posições
autônomas) são infiéis e merecem a morte. Isto explica a guerra entre xiitas e
sunitas, entre reformados e pentecostais e neopentecostais. Todos são donos da
verdade. E se são donos da verdade, quem não repete e não obedece o que
ensinam, merece morte e castigo eterno.
Fica fácil
entender porque tantos são mandados ao inferno pelos fundamentalistas,
conservadores e assemelhados. Na constelação dos eu não-pensam-mas-repetem, a
graça de Deus é heresia, o perdão é abominação e o amor ao inimigo é coisa de
louco varrido.
Marcos Inhauser
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quarta-feira, 5 de outubro de 2016
PERPETUAÇÃO POLÍTICA
Nenhum poder político é natural e inerente. Sempre é
concessão via votos, eleições ou, em casos extremos e recrimináveis, via
violência do golpe ou pelas “vias constitucionais” (vide exemplo da Venezuela e
Bolívia). Nenhum poder político é eterno. Mesmo os mais poderosos imperadores e
reis sucumbiram pela morte, deposição ou queda. O exercício do poder
democrático é o exercício do diálogo, ao contrário do poder autocrático que é o
monólogo de “um-que-tudo-sabe”. Na democracia se busca a maturidade cidadã (ao
menos é o que se espera), na autocracia se produz o paternalismo.
Por outro lado, já dizia Maquiavel, que não há posse mais
duradoura que a ruína. Quem se torna senhor de uma nação livre e não a destrói,
será destruído por ela. O desejo de liberdade não se esquece nunca e ele será o
motor para destronar os reis que arruínam a vida do seu povo.
O exercício do poder político se dá sobre um determinado
povo e espaço geográfico. Não há controle remoto nesta matéria. Quando os
poderosos deixam de cooperar para o bem do seu povo, mesmo que antes o tenham
feito, este mesmo povo, anteriormente beneficiado, se levantará contra para
recuperar o que lhe foi tirado ou para ampliar o que tem. Quando o povo tem os
benefícios e estes se mantêm iguais por um longo período, a insatisfação cresce
e o poder político está ameaçado. Eis, assim, o paradoxo: se não dá o que o
povo espera, é derrubado. Se dá e se mantém no mesmo nível, o povo se insurge
querendo mais.
Como todo poderoso tem o desejo de se tornar eterno no poder
e que seu reinado se perpetue na lembrança do povo, precisa ele ser hábil nas
concessões e na administração das insatisfações. Ser eterno, eis a questão.
Para que este projeto se realize, precisam conquistar o
poder, prometendo ao povo, aos mais necessitados, aquilo que anseiam porque
vital para eles: saúde, educação e segurança. Daí porque os discursos de
campanha se repetem a cada nova rodada.
Na história recente do Brasil viu-se projetos que esperavam
vinte ou mais anos de poder. Se inicialmente produziram alguns benefícios para
o povo, enveredam-se por caminhos os mais desastrados possíveis. Assim foi o
Sarney com o Plano Cruzado que redundou na hiperinflação (ainda que, dizem as
más línguas, ele se eternizou no poder); assim foi com o Collor e sua “caça aos
marajás”, que redundou na sua própria caçada e de seu tesoureiro. O FHC com sua
ambição produziu o advento da reeleição e, depois de terminar seu mandato,
muitos dos seus tinham vergonha de colocá-lo ao lado nas aparições públicas.
Assim foi com o PT: do “Fome Zero” para o Mensalão e Petrolão.
Muito se fala que o povo não sabe votar. Isto é verdade em
parte. Muitos dos corruptos, dos malandros, dos propineiros não conseguiram se
eleger ou se reeleger. Ficaram pelo caminho. Partidos há que encolheram,
perdendo votos, prefeituras e representação nas Câmaras Municipais. O PMDB
encolheu 12,5% e o PT bateu os 60,9%. Como toda regra tem sua exceção, o PP,
todo enrolado com a Lava Jato, manteve-se praticamente igual: -0,1%.
Houve significativa renovação nos quadros políticos, o que
dá certa esperança de que gente nova terá novos hábitos e nova forma de fazer
política. E assim deve ser, haja visto a alta taxa de abstenção, votos nulos e
em branco. Somados, pode-se entender como uma nota Zero para a classe política.
Marcos Inhauser
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