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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

PACIFICADOR BALEADO

Há momentos em que penso que estamos nos tempos da barbárie. Questiono-me se a civilização deu passos à frente. Poderia citar muitos fatos que me trazem este questionamento, tanto no Brasil, como em outros países.

Para citar exemplos deste mês, o caso da menina estuprada pelo tio, que engravida, tem risco de vida se continuasse com a gravidez e a invasão da casa da avó por parte de “religiosos” tentando impedir o procedimento legal.

Não bastasse a barbárie da morte de George Floyd, asfixiado por um policial que ficou ajoelhado em cima do seu pescoço por nove minutos, temos agora a cena de dois policiais atirando pelas costas em um negro. Tal se deu com Jacob Blake, na cidade de Kenosha, Wisconsin.

O que mais choca é que ele tinha parado seu carro para apartar uma briga entre duas mulheres. Saiu em missão de pacificar e, sabe-se lá por que, a briga virou contra ele, não pelas mulheres, mas pelos policiais. Deixou os filhos no carro para realizar uma missão de paz e foi baleado nas costas, por policiais truculentos, imbuídos de um racismo estrutural. E foi baleado na frente dos três filhos que estavam no carro!

Nestas horas eu me pergunto como o texto da bem-aventurança pode ser aplicado, entendido, ou pode explicar esta situação: “Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Como o Jacob Blake e seus familiares podem entender, aceitar e ser consolados com a afirmação de que seu pai, covardemente baleado, pode ser chamado Filho de Deus?

Eles estão angustiados com a saúde do pai, levado em estado grave para o hospital. Eles estão chocados com a brutalidade de quem, se sentindo dono da verdade e da vida alheia, decide, à queima-roupa e pelas costas, atentar contra a vida daquele que os deixou no carro (em segurança, diria eu), para ir fazer um ato que é obediência ao mandamento bíblico: pacificar.

Como já ocorreu em outras situações semelhantes, o ato gerou uma onda de revolta, com mais violência gerada. Este paradoxo é intrigante: um ato de pacificar gera a violência policial que, por sua vez, gera a violência social. A pergunta que fica: é errado tentar ser pacificador em uma sociedade estruturalmente violenta?

Como ser pacificador no Brasil onde o discurso de violência vem de cima? Quando os que têm a incumbência constitucional de gerar a paz social, pregam o armamentismo? Como ser pacifista em uma nação onde a violência no campo gerou muitas mortes (Padre Jósimo, Chico Mendes e Dorothy Mae Stang, para citar só três), onde o ministro do Meio Ambiente é o maior agressor ambiental que se conhece hoje em dia? Como ser pacificador quando a polícia entra nas favelas em suposto confronto com marginais e mata, com balas perdidas ou dano lateral, crianças em suas casas?

O pacificador, além de sua tarefa imediata de gerar paz em situações de conflito, também tem o dom de desmascarar a violência. A pacificação é um processo com exigências radicais. Não se pode ser pacificador com medo, com meias palavras. Em certa medida, trabalhar pela paz é trazer a luta contra a violência estrutural.

Em nenhum momento Cristo disse que a vida cristã seria fácil. E não é para menos que, anunciando a paz, foi crucificado!

Marcos Inhauser

 

A CULPA AGRESSIVA

Normalmente experimentamos sentimento de culpa quando reconhecemos que somos a causa do infortúnio de outra pessoa. A teoria intrapsíquica afirma que as regras e valores morais internos que aprendemos e introjetamos desde a infância, quando violados por nós, nos leva a um sentimento de culpa. A culpa, então, é o resultado emocional de um conflito entre nossas regras e valores e nossos comportamentos ou omissões. Nessa visão, a culpa diz respeito ao sentimento de ter desobedecido aos próprios valores morais internos, mesmo sem agir ou compartilhar o sentimento com os outros. Isso pode causar uma expectativa de punição, expiação ou pedido de desculpas. A pessoa que se sente culpada tem a sensação de ser uma “pessoa má”.

Percebe-se que o sentimento de culpa se dá em razão de ações positivas cometidas, intencionais ou não, ou de ações omissivas, também intencionais ou não. A pessoa se sente culpada pelo que fez ou deixou de fazer e este sentimento o leva a várias opções possíveis, no sentido de amainar o sentimento que passa a corroê-lo.

O primeiro deles é reconhecer que errou ao fazer ou deixar de fazer e assumir este erro junto à pessoa afetada. Se isto já não mais é possível, pelo falecimento ou impossibilidade de encontrá-la, tal reconhecimento pode ser feito junto a terceiras pessoas, um confessor, por exemplo.

O segundo comportamento é encontrar motivos para o seu ato ou para a sua omissão. A pessoa buscará um sem-fim de razões para mostrar que o erro não foi intencional ou que não teve a dimensão que se que dar. É um mecanismo de fuga à responsabilidade.

O terceiro é culpar outros pelo seu erro positivo ou omissivo. Ele não é culpado porque alguém o fez errar ou se omitir, alguém não o informou, ou alguém fez algo que o impediu de agir corretamente. Santo Agostinho, em seu livro “Confissões” tem esta atitude ao dizer que “foi forçado a pecar”.

O quarto é quando a pessoa deixou de fazer ou fez algo e outra pessoa assumiu o papel e fez o que ela deveria ter feito. Há nisto um duplo sentimento: o do erro ao ter falhado e o da acusação sub-reptícia de alguém que assumiu o seu lugar fazendo o que ele não fez. A dimensão da culpa aliada ao sentimento de estar sendo acusado pela prontidão do outro em fazer o que se esperava que ele fizesse, leva a pessoa a denegrir as competências ou habilidades de quem o substituiu.

O mecanismo de achincalhar a pessoa que fez o que ele não fez é cruel e perde o sentido da ética e ultrapassa os limites da civilidade. Para não se sentir culpado e acusado, passa a acusar quem cobriu sua falha com acusações não comprovadas, com tentativas de diminuição das capacidades, habilidades e até mesmo desmerecendo os logros acadêmicos ou profissionais que a pessoa que o substituiu tem. A culpa passa a ser agressiva, dirigida a quem fez o que o agressor não fez.

Na teoria interpessoal, por sua vez, a culpa resulta da consciência de ter causado um dano injustificável a alguém, não ter se comportado de forma altruísta ou amorosa, resultando em comportamento egoísta, fruto da falta de empatia e compaixão, mesmo se tratando de pessoa supostamente amada. Aqui, o gatilho é a presença de uma pessoa em sofrimento ou necessidade, sendo injustamente penalizada pelos seus atos, não ajudando, desprezando ou, simplesmente, ignorando.

Aqui entra o auto-engano: a pessoa má não é quem deveria ser e não amou, mas quem no seu lugar amou e cuidou!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

UMA ESTANTE DE LIVROS NAS COSTAS

Nove entre dez entrevistados na televisão, lives de especialistas ou vídeo de “otoridades” em algum assunto, tem uma biblioteca nas costas do indivíduo. Há algumas considerações que merecem ser feitas sobre este fato.

Esta é uma forma de mostrar aos que se dispõe a ouvi-lo ou para chamar a atenção dos que passam de relance, que a pessoa é uma pessoa letrada, com muitos livros lidos e vasto conhecimento na área em que pretende falar alguma coisa. Quanto mais livros o sujeito tiver para mostrar, mais autoridade, supostamente, ele tem. Há um deles, o Guga Chacra, que tem livros dos dois lados de sua cabeça, todos colocados para que se facilite a leitura dos títulos e, como deveria ser, relacionados a assuntos do Oriente Médio e mundo árabe. Tal se dá porque ele é, de fato, um especialista no assunto. O que me chama a atenção é a arrumação deles. Parece que estão ali para promover os livros e se assim for, deve ganhar ou livros grátis das editoras, ou algum cachê.

Um ministro do STF tem uma coleção da Enciclopédia Mirador nas suas costas. Ela só pode ser relíquia bibliográfica por ser tão antiga e desatualizada. Deveria estar no sebo! Há quem mostre uma biblioteca toda certinha, com os livros arrumados por tamanho e, parece, por cor também. As que vi pertencem a mulheres: Cristiana Lobo e Eliana Cantanhede. Há quem tenha uma biblioteca com livros em desalinho e meio que jogados ao léu (Jorge Pontual). Há jornalista que aparece para dar seu furo ou reportagem em frente a estantes que supostamente têm livros.

Recebi há algum tempo uma “live” de pessoa que conheço bem e que o último livro que leu foi para a última prova na Faculdade. Lá estava ele em frente a uma biblioteca que nunca vi na sua casa!

Outra coisa, relacionada a esta é a quantidade de “lives” e vídeos feitos por pregadores. Eles obedecem a dois parâmetros: biblioteca nas costas ou uma baita Bíblia que o pregador segura nas suas mãos. Parece dizer que, quanto maior for a Bíblia, mais autoridade espiritual ele tem. Ao segurá-la de forma meio descuidada, quer passar a ideia de que tem familiaridade com o livro, tal como fazia Billy Graham ao dobrar a sua, encostando a capa na contracapa.

Com a tecnologia do chroma key, podemos duvidar que a biblioteca às costas realmente está ali ou foi montagem de cena. Posso perfeitamente ir à biblioteca municipal ou da Universidade, gravar um vídeo das estantes e depois montar a cena. Eu me coloco na frente deles e os espectadores acharão que tenho uma enorme quantidade de livros e que sou letrado.

Uma coisa também me chama a atenção nestes dias de pandemias: é raro ver um dos epidemiologistas, infectologistas, virologistas aparecer com biblioteca nas suas costas. Preferem aparecer no laboratório, como se tivessem parado a pesquisa para dar a entrevista. Há nisto também um ranço ideológico (no sentido de busca de poder).

Como estamos na era em que qualquer analfabeto se acha especialista em alguma coisa ou em tudo (haja vista a profusão de comentários de quem mal sabe escrever que está nas redes sociais, gente que não aprendeu que na língua portuguesa se usa vírgulas e pontos finais), uma biblioteca nas costas dá uma sensação de “otoridade”. Mesmo que seja montagem!

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

CONHECER-SE: UM DILEMA HISTÓRICO

Demócrito nasceu e viveu entre 460-370 a.C. Filósofo do período pré-socrático, foi o primeiro a formular a teoria atomista que afirmava que tudo é composto de átomos, partículas indivisíveis que diferem apenas pela forma, tamanho, posição e ordem. Não se conhece seus escritos completos, só alguns fragmentos, muitos deles através de citações de Aristóteles, quem era seu crítico.

Ele tem alguns conceitos universais (no sentido de que valiam para a sua época e para a nossa). No fragmento 72 ele diz: “desejar violentamente uma coisa é tornar-se cego para o demais”. A paixão desenfreada por algo ou por uma ideia é sinal de cegueira para outras verdades. O vida focada em um só assunto perde a dimensão e visão das demais. A pessoa passa a ter uma visão de tubo e os ouvidos se fecham para tudo o que não confirma o que crê.

O exagero de acreditar em algo mostra que, de alguma forma, o sujeito está fora de si ou que perdeu o senso de realidade. É um obstinado, cego para outras perspectivas e possibilidades, com a impossibilidade de enxergar-se. Acaba sendo ridículo.

O filósofo Karl Popper, filósofo da ciência, rejeitou as posições indutivistas clássicas propondo o falsificacionismo, porque, para ele, pelas ciências empíricas não se prova nada, mas se falsifica. Tudo deve ser examinado por experimentos decisivos. O que a experiência e as observações podem e fazem é encontrar provas da falsidade de uma teoria. Quando isto acontece, há que eliminá-la por ser falsa e buscar outra que explique o fenômeno em análise. Percebe-se assim que, para o obcecado pelas verdades que crê, não admite ser questionado e muito menos, que alguém prove a falsidade de seu posicionamento. Ele é a verdade e nunca admitirá que pode estar errado. Entra-se no surreal de que a mentira é “liberdade de expressão”.

Quem se conhece a si mesmo, sabe dos seus limites e não exagera na convicção de suas crenças, antes é alguém aberto ao diálogo, ao confronto, ao contraditório. Aceita que, mesmo que creia com toda a força dos argumentos que têm em mãos, pode ser que seu ponto de vista esteja errado ou seja falso. Isto é maturidade. Quem não se enxerga não vê o outro. Só aceita quem diz o que ele diz ou o que ele quer ouvir. O que pensa diferente é inimigo.

O sujeito maduro tem a capacidade de examinar seus próprios sentimentos, de ver-se desde fora de si mesmo, distanciar-se dos exageros que os sentimentos promovem e, assim, reduzir o risco da miopia obtusa que a extremada convicção lhe dá. Cabe aqui o provérbio bíblico: “quem confia no próprio coração é um insensato (28:26).

Em tempos de exacerbação das opiniões via redes sociais, onde cada um tem o poder de escrever e dar sua opinião sobre tudo, mesmo sobre coisas que nunca soube que existia ou que não é de sua área de conhecimento, percebe-se, seja pela ortografia, pela sintaxe ou pela lógica que se revelam ignorantes. No dizer do apóstolo Paulo: “Desviando-se algumas pessoas ..., perderam-se em loquacidade frívola, pretendendo passar por mestres ..., não compreendendo, todavia, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações.” (ITm 1:11).

Marcos Inhauser