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quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

REPETIR E CRIAR


Uma coisa é saber de memória todas as peças musicais de Mozart ou Beethoven. Outra é saber executar cada uma delas, executando-as com perfeição. O primeiro é conhecimento, o segundo é habilidade. A habilidade pode prescindir do conhecimento, mas para tocar Mozart ou Beethoven, o conhecimento é fundamental. Sem ele e só no exercício da habilidade pode se tocar qualquer coisa, menos as obras dos gênios da música.
Conhecimento e habilidade associados formam um exímio pianista ou, até mesmo, um regente. Mas conhecer profundamente e tocar perfeitamente o que eles escreveram e compuseram não torna ninguém um compositor. Há uma enorme distância entre ser um virtuoso no piano e ser um compositor, mesmo que de músicas medíocres.
Posso ler todas as obras T. S. Elliot, posso recitar seus poemas com maestria e perfeição, dando quase-realidade ao que ele escreveu, mas daí a eu ser um poeta, vai uma distância de anos-luz.
Para ser genial na música ou na poesia não basta conhecer, mas é fundamental ter a originalidade e a rejeição do que é senso comum. É lançar um “olhar e proposta rebeldes” sobre o que se tem. Excelentes alunos na escola, que tiram nota dez em quase tudo, não serão gênios nesta ou naquela área, porque aprenderam a repetir o que lhes foi ensinado. As notas tiradas mostram o cabestreamento que o sistema educacional colocou, obrigando-os a saber exatamente como ensinaram, responder na ponta da língua, de preferência com as mesmas palavras. Qualquer desvio é punido com notas baixas.
Eles se dedicam de corpo e alma em conhecer o que há e não em produzir coisa nova. Bons alunos dificilmente serão gênios criativos. Eles podem sofrer com o sistema, mas não estão treinados a questionar, desafiar, mudar, rejeitar. A palavra-chave é obediência. E repetição. “Sempre foi assim e continuará sendo assim”.
Não serão o “aluno-do-ano” ou o “empregado-modelo” que mudarão o mundo. Se queremos mudanças não peça a eles. Estudos têm mostrado que as pessoas que conseguiram mudar o mundo ou uma área do mundo não foram crianças excepcionais na escola. Porque se rebelaram contra o sistema impositivo do conhecimento existente, tiveram a audácia de propor coisa nova, diferente, que foi uma ruptura com o dado. Os alunos “caxias” fazem de tudo para receber a aprovação dos pais e professores e para isto reproduzem o que existe. Os alunos rebeldes não se prestam a agradar ao sistema, mas em propor novidades.
A ênfase no sucesso é uma forma de “criar autômatos”. Para se ter sucesso precisa ser obediente, seguir as regras, trilhar caminhos já percorridos. Leem o que podem de biografias de pessoas que foram exitosas e tentam repetir o que eles fizerem para chegar ao topo. Quanto mais se valoriza o sucesso, menos se dá asas à imaginação da criatividade. É a busca incessante do sucesso garantido.
Para ser um gênio e mudar o mundo é preciso ter a coragem para a destruição criativa. O novo e a invenção, requerem que coisas velhas sejam derrubadas, quebradas, destruídas. Estabelece uma ruptura no modo de fazer e propõe a novidade. É revolução e não reforma. Para ser original há que se ter estrutura emocional e resiliência para aguentar os trancos e pauladas que os conservadores darão. Ser a novidade é coisa para gente grande, emocionalmente bem firmada. É perseguir o objetivo mesmo que isto custe milhares de tentativas frustradas, como foi com Thomas Edison até que inventou a lâmpada.
Marcos Inhauser


quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

EMPREJA


A coqueluche da ciência destes dias é a engenharia genética. Começou fazendo experimentos com plantas para produzir espécies mais resistentes, depois passou para os animais, chegou à clonagem e boatos dizem que já clonaram seres humanos. Parece ilimitada sua capacidade em produzir novidades.
Ela chegou também ao campo das igrejas. A partir da década de oitenta, começaram a aparecer os primeiros seres híbridos entre a empresa e a igreja. E disto nasceu uma espécie bastante robusta e vistosa que é a empreja.
Como todo novo ser criado em laboratório, este também precisou incorporar certos vocábulos novos ou assimilar outros do mundo com o qual se associou. O pastor foi cedendo espaço para o líder. O pastorado passou a ser mais administrativo que relacional. A hierarquia tomou conta e surgiram centenas de apóstolos, bispos, profetas, missionários, evangelistas, uma nova geração com títulos bíblicos que estão mais para a Qualidade Total que para o pastoreio do rebanho. O discipulado virou coaching, evangelização agora é marketing da igreja. O trabalho deles passou a ser medido em termos quantitativos e não mais qualitativos.
A empreja passou a ser avaliada em termos de crescimento, renda, arrecadação, tamanho da platéia, níveis de decibéis no momento do louvor. O financeiro passou a falar mais alto que o espiritual. Como me confidenciou um pastor, tem Deus Revelado a ele que a saúde espiritual de sua igreja deve ser medida pelo saldo da conta corrente.
A empreja não evangeliza, faz marketing; não tem rol de membros, tem cadastro de freqüentadores; não tem assembléia, tem liderança que decide em nome da comunidade. Na empreja o fiel não pensa, repete. É um autômato de uma linha de produção em série, bem ao estilo henrifordiano. Na empreja o narciso de um ou alguns têm completa liberdade de expressão. Tal como aquele jogador de futebol que bate escanteio e corre para a área para cabecear, na empreja o narciso ora, canta, prega, dá a benção, faz a coleta e não muito raro, gasta o dinheiro arrecadado.
Na empreja é pecado perguntar, mas é virtude submeter-se; o assunto predileto é autoridade na visão bíblica, onde é maldito o que se levanta contra o “ungido do Senhor”, que é o pastor-proprietário do rebanho. Alguns chegam ao cúmulo de alterar o estatuto para prever que ninguém pode levantar qualquer assunto na Assembléia sem que seja do conhecimento e aprovação do pastor da igreja.
Na empreja se valoriza o tempo de exposição na mídia, pois, como empreja que tem um produto a vender, a salvação em Jesus Cristo, quanto mais ela esteja visível tanto mais sucesso terá. Daí porque tantos programas religiosos na TV.
Os princípios de qualidade total substituem os valores bíblicos e teológicos. O pastor deve ganhar pela sua produtividade: um porcentual pelo número de freqüentadores e outro pelo volume de ofertas levantadas. Em alguns casos, a fórmula é: o dízimo arrecadado é para o líder (pastor, apóstolo, bispo ou seja o que for) e as ofertas extras são para pagar as despesas de funcionamento da empreja.
Este ser geneticamente produzido está privatizando o céu, com lotes à venda nas emprejas, quais imobiliárias da eternidade. Emprejários tem conseguido mandato político e se arvoram em porta-vozes dos mundo religioso, mal denominado de evangélico.

Marcos Inhauser


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

SONS E BARULHO


Ruídos. O vento faz o seu, o mar ruge, os galhos estalam, os cachorros ladram. Eles vêm de toda a parte. O que os caracteriza é que eles são sons sem sentido aparente, desconexos, sem mensagem. Para ouvidos mais atentos um vento pode sinalizar algo, o estalo de um galho pode prever uma tragédia, um cachorro ladrando pode ser anúncio de algo.
Há os que são harmônicos com os que ocorrem em música sinfônicas, os produzidos por orquestras, órgãos, pianos, violinos. São sons com uma delicadeza ou até mesmo certa ênfase, mas que nos indicam que há muito mais por trás deles. Há uma certa previsibilidade na próxima nota, um encadeamento sonoro quase que lógico. E como se ficássemos esperando a próxima nota e, quando ela vem, enche o vazio que estava à sua espera. Há um sentimento de saciedade quando as notas nos alcançam, como se nossa vida estivesse a depender delas ara renovar nossas foras ou pensamentos.
Mas há um som que é fundamental para todos nós: o som da palavra proferida. A palavra dá uma nova dimensão a tudo. A música, quando cantada, traz a palavra que, aliada à sonoridade e harmonia, nos provoca pensamentos. Ela é o traço distintivo que faz com que os seres humanos se relacionem, se amem, se odeiem, construam castelos e façam guerras. A palavra faz o ser humano ser qualitativamente diferente de tudo.
Nada é mais poderosa no mundo dos sons que a palavra. Nada é mais efêmero que a palavra. Ela tem curtíssima duração: dura o tempo de ser enunciada. Ela tem o vigor do instantâneo. Ela morre assim que é pronunciada. E mesmo assim é poderosíssima! Ela declara amores e pede favores. Ela declara ódios e tira dos pódios quem se arvora ser grande. Ela entra pelo ouvido e dá um trabalho imenso aos neurônios, porque semeia sonhos, planos, imaginações. Ela fomenta sentimentos de raiva, ódio, de vingança. Ela reconstrói pontes. Ela pede e declara o perdão.
Sem a apalavra o ser humano seria um “quase zero à esquerda”. Estudos antropológicos tentam reconstruir os caminhos e descaminhos para que o ser humano criasse uma forma avançada de comunicação, onde conceitos e sentimentos pudessem ser expressados. Como seriam os mais primitivos que só conseguiam falar uma meia dúzia de palavras e todas elas relacionadas a coisas concretas: chuva, água, fogo, comer, beber? Parece que um indicativo disto pode se ter no hebraico bíblico, bastante pobre em palavras e conceitos O recurso utilizado foi o uso das metáforas.
Línguas mais completas e onde se produziu boa parte da filosofia, são línguas ricas em palavras e com flexibilidade para construir novos vocábulos, como é o grego, o alemão e o francês. O português também tem sua riqueza, mas peca por certa inflexibilidade. Daí porque, me parece na minha laicidade, que usa palavrões, expressões regionais, caipirismos, onde há maior flexibilidade, para dizer o que as palavras não alcançam.
Palavra não é som emitido pelo ser humano. É o espírito humano que sai como sopro sonoro, é o vento que Deus soprou nas nossas narinas para que, aos expirá-lo, criássemos mundos. A palavra é muito mais do que aquilo que se fala e aquilo que se ouve. É algo divino entre os humanos. Por isto, Jesus nos alertou que seremos cobrados por toda palavra tola saída de nossa boca. Fala é o uso de um recurso divino em nós. Com ela somos co-criadores com Deus.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

IRA, IRÃ, IRA(QUE) E I(S)RAEL


Não é surpresa para ninguém que o Trump é um presidente irascível e imprevisível. A sua imprevisibilidade é motivo de orgulho para ele e de apreensão para os demais, tanto pessoas como governos.
O seu caráter iracundo já mostrou as garras em vários episódios. Desde a questão do muro separando o México dos Estados Unidos, passando pela forma como tem tratado os ilegais e as crianças, os filhos dos que tentam entrar ilegalmente colocados em campos de concentração, até a forma como tem lidado com questões internacionais. O início do diálogo com a Coreia do Norte foi abruptamente interrompido por sua deserção, por motivos nunca bem esclarecidos. A sua impetuosidade no trato das questões comerciais com a China, a desconsideração para com o acordo firmado pelo Barack Obama na questão nuclear do Irã, a saída do Acordo Climático, a decisão de sobretaxar aço e alumínio brasileiros, são outros exemplos deste par de características: imprevisibilidade associada à irascibilidade.
Fomos novamente surpreendidos pela sua decisão de matar o segundo homem na estrutura de poder do Irã, o Qasem Soleimani. A sua ira ele a direcionou ao Irã, na questão do acordo firmado sobre o enriquecimento do urânio. E para fazê-lo usou o território do Iraque que ele acha que é extensão do americano, uma vez que tem lá mais de seis mil soldados. Um ataque ao Irã desde o Ira(que)!
Na geopolítica mundial, a ação teve implicações que envolvem diretamente a I(s)rael, aliado ao qual destina sua fidelidade canina. Irã e Iraque são inimigos figadais e, ao mexer com o Irã, o tabuleiro também balançou para o lado da nação que já tem seus problemas com a vizinhança.
É imprevisível as ações que redundarão de tal ataque. A retórica já experimenta graus de ebulição, mas, em se tratando de Trump, é difícil dizer o que é verdade e o que é encenação. De uma coisa podemos estar certos: haverá retaliação. O problema está em definir quando e como. Mas, aqui, com meus botões, acho que quem vai pagar o pato, será Israel.
A justificativa para tal ataque é que o Soleimani era um terrorista e que os EUA têm o direito de combatê-los onde quer que seja. A definição de terrorista é subjetiva e se alinha com os interesses dos EUA. Já escrevi aqui, em outra oportunidade, que o que os EUA fizeram no Afeganistão, foi terrorismo. O ato de um homem e seus poucos aliados (Bin Laden) foi alastrado para toda uma nação. Como terrorista foi classificado o exército norte-americano, uma forma de retaliação feita pelo Irã.
Parece que, afirmar que alguém é terrorista, é a mesma coisa é como dizer que alguém é herege: sempre o outro o é e o é por questões menores. No entanto, a mesma classificação poder-se-ia dar ao exército e serviço de inteligência israelitas. Sob o pretexto de retaliar ataques de terroristas palestinos, têm desferido duros golpes conta a população civil. Quando confrontados com os danos civis, falam de danos colaterais ou que eram terroristas travestidos. A Ira justifica tudo!
Ira, ódio, vingança, retaliação. Palavras que fazem parte da cultura de muitos governantes e países. Pasma-me que, entre eles o que são religiosos (Irã), uma nação religiosa (Israel), um presidente aliançado aos evangélicos (Trump e a recente participação no encontro de Miami, os discurso de que os democratas querem impor uma agenda antirreligiosa), o discurso de ódio com todos os que são diferentes ou pensam diferentemente.
Ira, iracundo, irascível, ir(r)acional, imprevisível, intempestivo, impulsivo, insolente, inábil, inapto e inepto para o poder e a liderança. Este é o homem que promove a ira. Mais que isto, tem gente que se orgulha de imitá-lo!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

CONTROLE POPULAR DO PODER


Acabo de ler artigo publicado no El Pais explicando por que o povo elegeu Hitler. Voltei aos meus livros e leituras para ver o que mais poderia ler para fundamentar algumas das razões que o escritor do artigo elenca.
Encontrei este de William Godwin (Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on Moral and Happiness, GG Robinson, London, 1796, Vol I, pg 108): “O grau de imaturidade ou maturidade da população se refletirá no sistema político, produzindo um regime ditatorial ou uma situação de liberdade. Fraqueza interna torna um povo presa fácil de um conquistador, ao passo que o esforço para oprimir um povo maduro na liberdade, provavelmente não será bem-sucedido”.
Isto foi alertado pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos; “ ... as potestades constitucionais do Chefe de Estado, por ser tão numerosas, amplas e importantes, lhe outorgam um poder muito grande, sem os contrapesos significativos, que por sua natureza, não só abre as portas a uma aplicação abusiva do poder, mas também permite que se anule, limite ou distorça o exercício efetivo da representação política e da participação popular e, por conseguinte, a observância de outros direitos e garantias.” (Diez años de actividades” – 1971 a 1981, pg 270).
Para citar um pensador, o governo é um comitê com poder para gerir e facilitar os interesses da elite. Para tanto, ele deve acomodar as classes populares emergentes, domesticá-las em algum esquema bem ao gosto das classes dominantes. Lembro-me que, quando cursava o pós-graduação em Educação na UFSCAR, estudamos as reformas educacionais que o Brasil já teve. O professor centrou sua análise na exposição de motivos, situados no contexto histórico, social e econômico que a nação vivia. Ficava claro como as reformas educacionais foram feitas para prover às elites a mão de obra que necessitavam naquele momento. Lendo Bordieu e Passeron (A Repodução), percebi como a escola é a célula reprodutora do pensamento dominante e de domesticação das mentes.
As elites, ao perceberem que não podem resistir ao poder do povo que se rebela, começam a dar reputação e espaço para um dos seus elementos (do povo) e o fazem príncipe, para, sob sua sombra, ter seus apetites saciados. O povo, por sua vez, dá sustentação ao “príncipe do povo eleito”, pois acreditam que ele irá defender os seus interesses. Eles se equivocam pois, quem o elegeu, foi o poder econômicos dos ricos. O Brasil está cheio de exemplos desta natureza, tanto à direita como à esquerda.
É citada com frequência a frase atribuída ao governador mineiro Antônio Carlos de Andrada: “façamos a revolução antes que o povo a faça”. É a revolução dos poderosos para aplacar a ira do povo, vendendo como se a revolução viesse para satisfazer seu anseio. Assim foi com o Collor, com a Ditadura mal denominada de Regime Militar, com o plano Cruzado etc.
Quando se tenta unificar as coisas colocando juntos anjos, cosmos, Igreja, estruturas políticas, religiosos, religião e Deus como sendo a origem e o sustentador da integração das partes, a coisa assume aura de sagrado. Isto pode dar-se pelo uso de textos bíblicos fora de seus contextos, presença constante de religiosos ao redor do núcleo do poder, discursos com ares de sagrado, mantras religiosos repetidos à exaustão, pseudo-fundamentação em valores religiosos. Nada mais pernicioso e maléfico do que a ditadura religiosa. Que o diga Irã, Afeganistão, Guatemala sob a égide de Ríos Mont, Pinochet e seu messianismo. O governo assim concebido acha que está acima da lógica política (quer governar sem a política e os políticos), busca uma solidez ontológica (como se existisse de per se) e tudo passa a ter validade ética. Aos de fora do núcleo só cabe obedecer. Os desobedientes e contestadores são lançados ao fogo do inferno. Que o digam os defenestrados de Sarney, Collor, Lula, Dilma, Temer e Bolsonaro.
É o esquema de um poder que trabalha o povo, manipula seus sentimentos, fabrica comportamentos, tudo para fortalecer o poder econômico de poucos.
Alguma dúvida? Olhe os recentes dados de concentração de renda no Brasil. É indecente como nos últimos 50 anos a coisa foi feita para que os ricos sejam mais ricos.
Que os profetas (denunciadores do pecado do poder) não se calem. Quando não há profecia, a nação padece! Isto é bíblico!
Marcos Inhauser

sábado, 7 de dezembro de 2019

BIBLIOPLANISTAS


Virou moda, apesar do absurdo que é, afirmar que a terra é plana. Tem gente que o afirma categoricamente e há um autodidata louco e aprendiz de astrólogo que diz que não há nada que refute a ideia de que a terra é plana.
A coisa é tão estapafúrdia que se chegou a realizar a primeira Flat Con, a Convenção Nacional da Terra Plana, com a seguinte enunciação: "A Terra está parada. Não se move. A superfície da Terra é plana. Há uma cúpula sobre nós chamada o Firmamento. O sol, a lua e as estrelas estão sob a cúpula do Firmamento. O sol e a lua são muito menores e mais próximos do que nos dizem. O sol e a lua se movem em seus próprios padrões sobre a superfície da Terra. Não há planetas. Apenas estrelas no céu. Não há espaço. Não podemos sair da cúpula. Está tudo bem aqui ..."
Eles dizem que nossos sentidos indicam que Terra é plana, o mundo parece ser plano, logo deve ser plano. Para eles a Terra é um disco redondo e achatado, o Polo Norte está no centro, a borda é formada por gelo (Antártica), a circum-navegação da Terra é fazer volta ao redor do Polo Norte. Sol e a lua são pequenas esferas a poucos milhares de quilômetros da Terra, que se movem em círculos ao redor do Polo Norte, e outras barbaridades.
Duvidam da evidência fotográfica, porque acham ser fácil manipular imagens. Para eles, a exploração espacial nunca aconteceu: é conspiração. Os astronautas, que disseram ter visto a Terra é redonda, foram subornados ou obrigados a dizer isso.
Mas há, em número maior e com o mesmo grau de absurdo, os Biblioplanistas. Contra toda a evidência histórica, linguística, cultural, da crítica literária e da glotologia, saem afirmando besteiras sobre a Bíblia. Mesmo quando uma palavra se trata de uma apax legomena (palavra que ocorre uma única vez), eles sabem tudo sobre o significado dela, mesmo em se tratando, no caso da Bíblia, de duas línguas mortas (hebraico bíblico e grego koiné).
Para os Biblioplanistas, os gêneros literários são coisa de hereges para torcer o real sentido das Escrituras. As contradições entre narrativas históricas ou a duplicidade delas (como no caso da criação), é coisa que só incrédulo acredita. A Bíblia é infalível e inerrante. As aparentes contradições têm algo a mais e o leitor mais atento e cuidadoso fica míope para estas “verdades ocultas”. Perguntar, questionar e duvidar de certos relatos é condenação eterna para os Biblioplanistas.
Acreditam que o Pentateuco foi escrito por Moisés ainda no deserto (só não explicam como há tanta água no texto da criação se o ambiente dele era o deserto). Acreditam na literalidade numérica: Moisés esteve 40 anos na corte de Faraó, 40 anos no deserto, 40 dias no monte Sinai e mais 40 anos na peregrinação, saiu do Egito com 600.00 homens, perseguido por 600 carros de combate do Faraó.
Desconhecem os gêneros literários. Para eles não há na Bíblia novela, saga, lenda, mito, saga etiológica, ironia, hipérbole, poesia, conto, anedota, discurso narrativo ou épico, ode, metáfora etc. As parábolas devem ser tomadas no seu sentido mais literal possível. Tudo deve ser interpretado desde uma ótica plana e rasa: literalmente, onde cada palavra tem o sentido primário, sem possibilidades de interpretações segundo o gênero no qual foi escrito. A poesia se torna historiografia, a saga etiológica é descritiva de fatos originais, as fábulas são fatos históricos.
Também acreditam que a vida na terra é um campo de batalha entre Deus e Satanás, com seus demônios que trazem enfermidades, desgraças, falências, adultérios e que há pessoas escolhidas a dedo por Deus para expulsar os demônios e trazer prosperidade.
Com tamanha infantilidade interpretativa, não surpreende que expulsem demônios da caspa, da obesidade, acreditem que a serpente e a mula de Balaão realmente falaram, que o universo foi criado em sete dias de 24 horas e que a terra tenha não mais de 7000 anos!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 27 de novembro de 2019

ASSASSINOS DE COMPETÊNCIAS


Tive a oportunidade de fazer coaching com um gerente de área de uma multinacional. Ele me foi encaminhado como tendo problemas relacionais e de liderança. Fiz as duas primeiras sessões e descobri que havia algo mais que o atrapalhava: era extremamente centralizador.
Ele tinha uma equipe de umas 10 pessoas, todas competentes, com habilidades reconhecidas e expertise em áreas próprias. Um sabia bastante de Excel e dos macros que muitas planilhas demandam, outro era bom na manutenção e reparo na rede de computadores, tinha uma pessoa boa em escrever textos, outra que era boa no design gráfico, e assim por diante.
Ele tinha em mãos um potencial de trabalho que talvez nenhuma outra equipe na empresa se equiparasse. Tinha uma McLaren na mão, mas sua produção era de um Fusca. Voltei a conversar com o RH sobre o que estava percebendo e eles me afirmaram que eu estava no caminho certo e me pediram para ser mais direto sobre este tema com o coachee.
Na próxima sessão perguntei a ele quais eram, individualmente, as competências de cada um dos seus liderados. Ele foi descrevendo com certa acuidade e fui percebendo que ele tinha uma visão bastante completa do quadro funcional que tinha em mãos. Chegou a hora de ir mais fundo na questão: “qual foi a última vez que usou Fulano para fazer o que você diz que ele sabe fazer bem?”. Ele pensou, rememorou e foi taxativo: “não me lembro”, mas emendou em seguida: “talvez porque não houve nenhum trabalho que demandasse a competência que esta pessoa tem”.
Dei uma segunda rodada: “e Beltrana? O que você delegou a ela que ela pudesse usar suas competências? A resposta dele foi uma variação da primeira: “eu deleguei a ela uma tarefa, mas dada a urgência e complexidade, acompanhei a execução de perto e, no final, tive que assumir, para garantir que as coisas saíssem tempo e a contento”.
Na terceira rodada mudei o foco. Ao invés de perguntar sobre o passado, passei ao presente: “quais atividades que você tem hoje e a quem você delegou, segundo a habilidade que cada um tem?”. Ele citou alguns projetos nos quais o seu departamento estava envolvido, falou da complexidade de vários deles e mencionou, já prevendo a próxima pergunta: “eu tenho delegado coisas à minha equipe, mas, por questão de segurança, acompanho de perto o desenvolvimento e se vejo que as coisas estão fora do prazo ou não são feitas do jeito estabelecido, eu tomo as rédeas do processo”.
Conversa vai, conversa vem e descubro que ele era um acaparador. O termo vem do espanhol e significa a pessoa que assume todas as coisas, tem dificuldades de delegar, não usa as pessoas que tem, não desenvolve talentos e sepulta as competências que tem na equipe. Elas morrem por desmotivação, frustração e inanição. O acaparador entende de cesariana a motor a explosão. Tudo ele sabe, tem opinião marcante sobre todos os temas, sempre se coloca numa posição crítica em relação à opinião e sugestões que porventura lhe façam. Lógico, bastante racional e de boa argumentação, justifica sua atitude acaparadora como sendo benéfica para a empresa e a equipe, porque “ele sabe fazer melhor que qualquer um.” Usa de alguma deficiência de uma outra delegação que passou para justificar que prefere ele fazer todas as coisas.
Não preciso dizer que o acaparador é assassino de talentos, mas também é autofágico. Ou morre pela quantidade de coisas que assume para fazer (nem sempre fazendo tudo o que assume) ou morre pela avaliação funcional: é demitido por “excesso de trabalho e resultados pífios”. Ele se vê uma McLaren, a empresa e os colegas o veem como Fusca.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 20 de novembro de 2019

CORRIGINDO-SE


Isto já me aconteceu várias vezes e percebo que não é só comigo. Escrevo algo, leio o que escrevi, corrijo, releio, e outra vez corrijo e mais uma vez leio e acho que está tudo bem. Mando a coluna para a publicação e quando é publicada percebo que escaparam coisas que deveriam ser corrigidas. Até já tive leitoras que me escreveram alertando sobre isto.
Tenho notado isto em outros colunistas (sou meio viciado em notícias e no jornalismo opinativo). É frequente encontrar erros nos textos que publicam na internet, coisas que não percebia no jornalismo impresso. Parece que é um mal do mundo digital.
Há muitos erros. Um deles e bastante comum no mundo da digitação é a inversão de letras na hora de digital. Lembro-me de, certa feita, ter escrito graça e na publicação descobri que havia digitado garça. Outro comum é a inserção de espaço no meio de uma palavra (ins tantâneo) ou colocar a última letra acoplada à palavra seguinte (queir aDeus), ou ainda a falta espaço entre palavras (coisassimples, queevidenciam). Tais erros são facilmente reconhecidos e merecem o beneplácito da indulgência. Há os erros de ditografia (escrever duas vezes em seguida a mesma palavra). Há ainda os erros que podem parecer de digitação, mas que, na realidade, são de alfabetização: souteira, adimito, pissicologia, previlégio e outras mais.
Outro erro comum, mas mais grave, é o da concordância que corta o “s” final ou não declina o verbo apropriadamente (os filho, fulano e beltrano comeu). Há ainda o erro de grafia e de gramática que evidenciam problemas mais sérios de conhecimento da língua: trocar mas por mais, eminência por iminência, precursora por percussora.
Certos tipos de erros podem ocorrer quando se copia um documento a partir de ditado. Podemos substituir uma palavra homófona por outra; i.e., “cozer” por “coser” ou “massa” por “maça”, “haja” e “aja”, “haver” e “a ver”, “passo” e “paço”.
Mas o que me chama a atenção é a incapacidade de ser perfeita a correção de alguém que relê o que escreveu. A gente escreve, lê, relê várias vezes e passa por cima dos erros. Parece que a mente não se atina para coisas simples ou tem um mecanismo de defesa para que não perceba os próprios erros.
Acho que é uma benção não termos a capacidade de ver todos os nossos erros. Se tal fizéssemos, seríamos eternos deprimidos e candidatos sérios ao suicídio. Há uma taxa de erros e defeitos em nós que reconhecemos e que nos fazem (ou deveriam) ter a consciência de que não devemos ser arrogantes ou jactanciosos. Há outros que os conhecemos pela ajuda de outros, que podem ser suaves ou duros ao apresentá-los a nós.
Depois de ter sido alertado para alguns erros de digitação (e mesmo de concordância), passei a levar a sério a orientação de um famoso jornalista do New York Times: escreva do jeito que você fala. Coloque o que escreveu na gaveta e no outro dia volte a ler e corrija. Coloque de novo na gaveta. Depois de dois ou três dias volte a ler e corte os adjetivos, as palavras terminadas em “mente”, transforme metade das vírgulas em ponto final. Dê um tempo e volte a ler. Depois peça para alguém corrigir o que você escreveu.
Mesmo assim não há garantia de perfeição. E se não somos perfeitos, por que se considerar melhor que os outros? Cada um tem sua taxa de imperfeição que deverá saber administrar. Cada pessoa com quem nos relacionamos tem sua taxa de imperfeição que devemos saber relevar. Nada mais chato do que conviver com uma pessoa que se acha perfeita!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 13 de novembro de 2019

EVANGÉLICOS NÃO-CRISTÃOS


Pode parecer uma incoerência, mas não o é. Há muitos que declaram ser evangélicos e negam em suas vidas e pregações o que os evangelhos ensinam. Mas, antes de mais ada, precisamos conceituar os termos. Evangélico vem de evangelho, palavra que tem sua origem no grego neotestamentário (euangelión) e que significa “boas novas”. Curiosamente, ela foi originalmente usada até para o anúncio da vitória militar trazida por um mensageiro. Também se sabe que a palavra era usada para se referir a qualquer boa nova, independentemente da natureza ou do contexto onde a mesma estava inserida. Só mais tarde é que os escritores do Novo Testamento, ao fazerem dela uso, começaram a restringir o seu significado para se referir a Jesus Cristo e ao anúncio da salvação.
Estrita e morfologicamente falando, qualquer boa nova é euangelión e, por conseguinte, anunciar boas novas é evangelizar, não importa o campo em que tal boa nova pertença. Também se refere ao conteúdo conhecido como evangelhos. E mais contemporaneamente, o termo “evangélico” se refere aos que “pautam suas vidas pelos ensinamentos dos evangelhos”. Uma denominação evangélica seria, portanto, aquela que tem nos evangelhos a sua Carta Magna e referência maior para os valores e práticas da vida. Ser evangélico é ter nos quatro escritos o parâmetro para avaliar todos os demais livros, até mesmo os que estão na Bíblia.
Os anabatistas mais radicais acreditam e ensinam que há uma gradação na revelação que está nas Escrituras: Palavra de Deus é o que Jesus falou, o que Ele ensinou e isto está nos evangelhos. Todos os demais escritos bíblicos são Palavra de Deus desde que concordem com os que Jesus falou e ensinou. Note-se que, nesta visão radical do evangélico, há coisas bíblicas que não são evangélicas, porque vão contra os ensinamentos de Jesus. Os textos que falam da guerra são informativos e não normativos. Seguir a Cristo é seguir ao que dEle se sabe e conhece e descartar o que contra Ele e seus ensinamento se colocam.
Ora, se um “evangélico” prega a ira, o racismo, a beligerância, o armamento, pode ele ser considerado um evangélico e cristão? Se um “evangélico” defende a tortura e cultua um torturador, pode ele ser considerado evangélico? Se o Sermão do Monte é parte central nos ensinos de Jesus, pode ser cristão quem os nega e ensina o que vai contra os ensinamentos do Sermão do Monte? Pode ser o guerreiro um pacificador? Pode ser cristão quem promove o armamento, se envolve sistematicamente em corrupção, desvia verbas da merenda e a saúde? É cristão quem tem a ira como a essência do viver? Como achar que é evangélico quem não aceita e nem pratica a recomendação de “amar os inimigos” e “dar a outra face a quem bateu”? Se o evangelho é o anúncio da graça, é evangélico quem vende bençãos?
Tudo o que não é amor a Deus, ao próximo e a si mesmo (não no sentido egoísta e narcísico, mas no sentido de zelar pela própria vida) não pode ser considerado cristão e nem evangélico. Esta foi a resposta de Jesus quando perguntado qual era o maior dos mandamentos. O verdadeiro cristão se conhece pela sua dedicação ao próximo e seu ministério para empoderá-lo, suprindo suas necessidades, aconselhando, dando agasalho, conforto e norte para a vida. Evangelizar é dar sentido a vida do outro, é dar a dimensão de eternidade para quem está na depressão, é ar a esperança de melhores dias pela solidariedade e justiça
Marcos Inhauser

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

HIENAS E SUAS HISTÓRIAS


Elas entraram na história não é de hoje. Também não é de agora que elas estão envoltas em projetos de poder político com roupagem religiosa.
Conta história que, no informe Albuquerque de 1514, antes mesmo que os descobrimentos continentais feitos por espanholes e portugueses tivessem atraído a maior parte dos colonos, Espanha destinou um milhar de espanhóis quando só restavam 29.000 indígenas, demonstrando que os anos primeiros foram terríveis na mortandade dos nativos. Georg Friederici em seu livro “Caracter del Descubrimiento y la Conquista de America” (Fondo de Cultura Económica, Mexico, 1987, pg. 397) relata que o cortar das mãos aos prisioneiros de guerra (nativos) e obrigá-los a sair correndo, era uma crueldade que se praticava na Espanha antes do descobrimento da América. Na América os espanhóis fizeram uso destes recursos com uma crueldade ainda mais espantosa, Depois de cortar as mãos e os pés dos homens e os seios das mulheres, eles os obrigavam a arrastar-se ou andar até que morressem por esgotamento sanguíneo. Era um espetáculo que propiciavam aos demais para infundir o terror.
Cieza de León em sua obra “Guerra de Añaquito”, citado pelo mesmo autor antes mencionado, afirma que “os piores exemplos da pavorosa e desalmada crueldade e da contextura moral dos conquistadores nos brinda ... no campo de batalha de Añaquito, onde o licenciado Benito Juarez de Carbajal, como uma hiena sedenta de sangue, estava em busca do representante do monarca Carlos, o vice-rei Blasco Nuñes de Vela. Encontrou, por fim, o ancião dignatário ferido, mas não mortalmente e ainda em estada de consciência. Ele o cobriu de impropérios e teria cortado pessoalmente a sua cabeça se seu acompanhante, Pedro de Puelles, não o tivesse alertado da infâmia de tal ação.” Conta a história de Blasco Nuñes obrigou a seu escravo a cortar cabeça ao vice-rei, tomou-a pelas barbas e saiu caminho afora levando o troféu e apresentando-o a todos quantos encontrava.
No “Arquivo Geral da Índias” se lê que “muita da prata que se tira daqui para esses reinos é beneficiada com o sangue dos índios e vai envolta em suas peles” (Dussel, Henrique. Caminhos da Libertação Latino Americana, Ed. Paulinas, 1989, pg.59).
Bartolomé de la Casas, dominicano e voz profética de denúncia dos desvarios da corte espanhola, afirmou que “a causa foi a cobiça e ambição insaciáveis que possuíam, que foram as maiores que podem existir no mundo ... não tiveram nem respeito, nem estima, que não digo que as trataram como bestas, mas como menos que esterco das praças” (Dussel, idem, pg 59-60).
Contraponto a Bartolomé de las Casas estava Gines de Sepúlveda, quem, baseado numa questionável Teologia Natural, alegava que os indígenas não tinham alma e que, portanto, não eram seres humanos. Este Ginés teve uma infância e adolescência cheia de insucessos e problemas (mentais?), com atos e escritos que beiram ao ridículo. Hoje, talvez, fosse diagnosticado como esquizofrênico ou bipolar.
São duas posturas religiosas: uma que usa dela para fundamentar um projeto político imperialista. O outro que usa da teologia para denunciar os desvios dos governantes e religiosos apaniguados. A retro-oculatra mostra do acerto do profeta em detrimento da voz mancomunada com o poder.
A minha sensação ao fazer este reconto histórico é que ele é muito atual. As hienas sedentas estão por aí, mas pregadas pelos Ginés de Sepúlvedas modernos.
Marcos Inhauser