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quarta-feira, 12 de maio de 2021

O TRÔPEGO E O EQUILIBRISTA



Tenho meu lado masoquista. Já tentei por três vezes ler o Ulisses de James Joyce, algumas vezes o Capital de Marx, Crítica da Razão Pura do Kant e algumas obras de Hegel, e a mais hermética delas, O Espírito da Lógica. Desastre anunciado. De cada frase lida entendia um terço, se é que entendia. Há outras que nunca consegui ler, por pura assintonia com o tema e seu desenvolvimento: Pequeno Príncipe e Meu Pé de Laranja Lima.

Já tive outros surtos em noites de insônia: escutar sermões de pregadores da prosperidade na madrugada. Nada se compara às intermináveis alocuções de ministros do STF em seus votos, que já ouvi por horas a fio.

Dito isto, afirmo que assisti a todo o depoimento do ministro Quiroga à CPI da Pandemia. Dos outros dois anteriores vi partes, pois presumia que já sabia o que diriam e que nada muito bombástico sairia, mas que não se furtariam a tisnar a reputação do “impoluto”. No caso do Quiroga, dada as circunstâncias de sua nomeação, logo após a recusa de uma médica por perceber que não teria autonomia (e isto ela afirmou ao explicar a recusa ao convite), me dava certo interesse. E lá fui eu exercer este meu lado de sofrimento.

À medida que ouvia as perguntas e lia a expressão corporal do questionado, percebia o extremo desconforto do ministro. Mesmo nas perguntas e/ou “defesas”, o seu corporal mostrava a sua incômoda situação. À medida que a inquirição avançava, uma coisa acontecia comigo: não saía da minha cabeça a música do João Bosco, eternizada pela Elis Regina, O Bêbado e o Equilibrista. Diante das perguntas que se referiam às trôpegas ações do Ministério da Saúde, o equilibrista tentava se manter em pé, sem derrubar ninguém e esforçando-se para não cair ou ser caído.

Com o DNA de quiabo, escorregava. Tal como porco ensebado em festa caipira de São João, ele escapava das tentativas de ser agarrado. Até broncas públicas ele levou por sua técnica evasiva de responder sem se comprometer. Ele sabia que, se não mantivesse a postura de se equilibrar na corda bamba, derrubaria o trôpego. Efeito dominó: se ele cai, leva mais gente junto. Também zelava seu currículo para ser tão breve quanto foi o Teich.

A música estava cada vez mais forte e comecei a ter vontade de cantá-la, especialmente alguns versos: “Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto / Me lembrou Carlitos / A lua tal qual a dona do bordel / Pedia a cada estrela fria / Um brilho de aluguel / E nuvens lá no mata-borrão do céu / Chupavam manchas torturadas / Que sufoco! / Louco, o bêbado com chapéu coco / Fazia irreverências mil / Pra noite do Brasil, meu Brasil / Que sonha com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete / Chora a nossa pátria, mãe gentil / Choram Marias e Clarisses / No solo do Brasil / Mas sei que uma dor assim pungente / Não há de ser inutilmente / A esperança dança / Na corda bamba de sombrinha / E em cada passo dessa linha / Pode se machucar / Azar, a esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que continuar.

Confesso que, na minha versão cantada, troquei umas poucas palavras para ser mais atual, ainda que nem sempre obedeci a métrica e as tônicas. E eu cantando a minha versão fui mais desafinado que o depoimento do ministro.

Marcos Inhauser