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segunda-feira, 28 de junho de 2021

DEPOIS DE MIL, A SEPARAÇÃO AMIGÁVEL

Se não errei na conta, escrevi 1022 colunas para o Correio Popular. Foram mais de 20 anos de escrita contínua, com um único período de férias, quando fui muito bem substituído pela Rute Salviano Almeida, pesquisadora e autora de vários livros sobre o papel da mulher na história da Igreja.

Comecei a escrever por indicação da jornalista Maria Tereza Costa. O meu compromisso era que não receberia nada em troca pelo meu trabalho semanal (nem mesmo uma assinatura do jornal!), para que eu pudesse ter liberdade. E assim foi durante todo o tempo: nunca recebi um centavo e fiz isto com dedicação e orgulho. Há quem me perguntou se era assalariado do PT, se era comissionado na Prefeitura, se ganhava do PSDB. Tais insinuações se deviam a mentes tacanhas que acham que não posso ter opinião própria: tudo o que penso e escrevo deve ter um pagamento por trás.

Nesta relação tive muitos contatos com os editores para sentir como estava sendo recebida minha coluna, umas duas ou três vezes fui alertado de que o que eu tinha escrito poderia me trazer problemas judiciais, mesmo assim a publicariam. Em comum acordo, troquei a mensagem escrita, pois vi sabedoria no conselho que o redator me dava.

Umas poucas vezes falhei em escrever. No início que eu tinha que levar para a redação um disquete com o arquivo. Com o advento da internet facilitaram. Algumas vezes não enviei e isto se deveu a viagens. Onde estava não tinha internet para mandar o arquivo (quando a internet era produto de luxo e não se achava em qualquer lugar). Em outras ocasiões eu ligava para a redação e pedia prazo estendido para enviar, porque, em viagem, só chegaria em casa depois das sete da noite. Sempre fui atendido com a gentileza das pessoas que me atendiam.

Já escrevi que colunista não pode ter medo das críticas. É virar vidraça. Quando o colunista coloca em público e ao público as suas opiniões políticas e religiosas, fatalmente haverá quem discorde. Há os que discordam e o fazem saber em termos polidos. Há os que, discordando, acham que atacar e ofender é o meio mais eficaz de ser ouvido.

Recebi muitos e-mails. Alguns concordando e muitos discordando. Entre os que discordavam, lembro-me de um que me escreveu uma série de e-mails. Ele lia e não entendia o que eu havia escrito, ou deduzia maniqueisticamente. Quando critiquei o Bush pela guerra contra o Talibã, ele me chamou de comunista e terrorista, como se criticar a decisão do presidente me colocasse necessariamente como favorável à outra parte. A lógica dele era: se ele é contra A, só pode ser a favor de B. Silogismo falso.

Certa feita fiz um comentário en passant sobre o Foucault. Um leitor me escreveu criticando a citação e me enviou um compêndio, de sua lavra, com críticas ao filósofo. Por se tratar de um estudioso e mestrando na área eu o li e, diferentemente do que ele pretendia, eu fui ler mais coisas do Foucault e hoje sou um fã dele. Tenho pessoas que me enviam coisas que acham interessantes e que podem ser subsídio.

Desde o início assumi que escreveria sobre política internacional, nacional e local e sobre religião e igrejas. Assim fiz.

Ter sido colunista me deu alegria. Como tudo na vida tem começo, meio e fim, encerro o meu ciclo.

Quando há alguns anos li que em 2025 se publicaria a última edição de um jornal impresso no mundo, achei exagero. Mas constato que muitos já morreram. O jornal onde iniciei, quanto tinha 12 anos, a Tribuna de Indaiá, já fechou. Onde meu pai escrevia, o Votura, também fechou. Os jornais, via de regra, encolheram. Quem comprava o Estadão aos domingos e vai comprá-lo hoje, percebe a diferença. Os jornais estão priorizando as notícias ainda que elas estejam nos portais. Para mim o jornal impresso está na UTI.

Opinião todo mundo tem e as coloca nos Face, Instagram, Twitter da vida, uma grande quantidade de comentários eivados de raiva e de pouca profundidade.

Continuo postando no Facebook e no blog (inhauser.blogspot.com). A quem me acompanhou, meu obrigado.

Marcos Inhauser

A ESPECIFICIDADE DA ESPECIALIDADE

Participei e participo de muitos grupos de pastores e especialistas em teologia. Há os que entendem de teologia e há os que entendem de Bíblia. São duas coisas diferentes dentro de uma área que, para os leigos, são a mesma coisa. Os especialistas em teologia podem ser em teologia sistemática, teologia bíblica, teologia prática, teologia pastoral, religião e sociedade, ou em história da teologia. Os especialistas em Bíblia podem ser em Antigo Testamento, Novo Testamento, Evangelhos, exegese bíblica, gêneros literários bíblicos, grego, hebraico, aramaico etc.

Assim como em outros campos do saber, há os generalistas, que têm uma visão do todo, mas que, quando precisam de informações mais precisas e profundas, buscam-nas com os especialistas. Um especialista sério, ainda que possa ter suas convicções sobre outras áreas que não a sua especialidade, preferem remeter o assunto a quem de direito.

O mesmo ocorre com a área médica. Há os clínicos gerais, mas há os ortopedistas, otorrinolaringologistas, dermatologistas, cardiologistas, pneumologistas, oncologistas, infectologistas etc. Para explicitar o detalhamento, no campo da ortopedia há quem se especialize em mão, outros em joelho, outros em quadril. Podem ter a visão geral, mas a especificidade da sua especialidade os leva a limitar-se à sua área.

Buscar um ortopedista para problema no ouvido é insensatez. O mesmo é buscar oncologista para tratar de infectologia. Como diz o ditado, “cada macaco no seu galho” ou “sapateiro, ao teu sapato”.

Há os que, ainda que tenham uma especialidade teológica, também se especializaram em áreas correlatas. Tenho um amigo que é teólogo, se especializou em Bonhoeffer, mas estudou muito sobre a teologia nas histórias em quadrinhos.

Eu me especializei na Teologia Pastoral e me preocupei com as relações de poder na relação pastor-igreja e igreja-sociedade. Estudo a participação dos líderes religiosos na política e o jogo de poder que se estabelece nestas relações. Com veio mais ao estilo do profético veterotestamentário, me inclino para as denúncias de conluios existentes nesta relação. Para esta minha leitura/interpretação valho-me dos noticiários, dos comentaristas, dos colegas pesquisadores na área, das informações colhidas nas conversas pessoais, da análise lógica, do confronto de versões, das leituras filosóficas e especialmente de Michel Foucault. Posso fazer menção a coisas do AT ou NT, da teologia e da história da Igreja, mas tenho consciência de que falo generalidades.

Como toda e qualquer interpretação de fatos públicos, posso ser aceito ou rejeitado nas minhas conclusões. Faz parte do jogo. Posso ser elogiado por quem não tem noção das coisas a que me refiro, posso ser criticado por quem, sem saber patavina da área, se arvora em conhecedor das entradas do piolho.

O que percebo é que, quem não conhece a especificidade da área tratada pelo especialista é acidamente atacado por quem nunca estudou. Um amigo, com doutorado em missiologia, escreveu um artigo na sua área. Eu o considerei muito bom e compartilhei. Teve quem se arvorou em melhor conhecedor que ele e, sem nunca ter se aprofundado na área, o acusou de heresia e destruidor da fé.

É o preço que o engenheiro civil paga ao ser criticado pelo pedreiro, que acha que sabe mais que ele.

Marcos Inhauser

terça-feira, 15 de junho de 2021

VOLIÇÃO E ATO NECESSÁRIO

Há coisas que, em função das circunstâncias, o indivíduo não pode deixar de fazer. A impossibilidade de não fazer decorre da própria natureza humana que, por sua herança arquetípica, por mais que tenha a volição direcionada em outro sentido, se vê compelido a fazê-lo.

Assim é o ato de sobrevivência. Diante da iminência da morte, o ser humano se dispõe a matar para se safar. Diante da fome, rouba o que lhe é necessário para viver. Em ambos os casos há consenso quase universal de que o praticante de tais atos não deve ser penalizado, uma vez que foram atos necessários.

Por outro lado, o ser humano, histórico e historicamente condicionado que é, opera no campo dos acontecimentos naturais e nos fatos históricos. Não existe diferença entre um e outro, uma vez que os atos naturais, ao receber a ação concomitante do ser humano, se torna histórico, porque é na relação entre fatos naturais e ação humana que se dá a história.

Neste sentido, há no histórico uma tensão entre o ontem que vai se esvaziando, mas querendo permanecer e o amanhã que quer se tornar, vir-a-ser. É na dimensão entre o ontem e o hoje que se dá a pregação e a profecia (no sentido de "falar da parte de" e "nunca no sentido de predizer", a pré-fecia). A pré-fecia tem um quê de mítico, na medida em que quer garantir o vir-a-ser pela enunciação da palavra. Como, na quase totalidade das vezes, os pré-fetas anunciam o futuro garantindo a ação de Deus, assumem uma versão mitológica na sua prédica, porque o vir-a-ser é ação dos deuses na história, elemento característico dos mitos.

Esta característica da pré-fecia deve ser "demitizada", porque tende a ser a-histórica. Antes, ao invés de massificar e alienar consciências, a profecia deve formar a consciência coletiva para a ação história significativa no momento chamado hoje. Para tanto há que se ter uma visão mais universal e não provincial ou pequena dos atos de Deus, tão característico das pré-fecias. O profeta fala de uma história global, não de coisas particulares e individuais.

Há ainda que lembrar-se que, no processo histórico, os vencedores de sistemas iníquos e exploradores, por terem agido histórica e conscienciosamente, lograram êxito nas suas empreitadas. Mas esta mesma história nos ensina que, ao galgar o poder, acabam reproduzindo as técnicas e injustiças do regime que combateram. Tanto no antigo como no novo regime, a história, entendida como falar e ter respostas, chamar e ser ouvido, não existe porque os gritos do povo são abafados. O profeta vem então fazer recordar, engajar o povo criando consciência e sempre lutando para que o status quo seja mudado.

Assim é o que vivemos. Tanto o PT como o atual governo, tiveram e tem no seu discurso o combate à corrupção, se apresentaram e apresentam e como voz do povo. Galgados ao poder, se transformaram e esquivam-se de dar respostas às questões importantes e interessantes e fizeram ou fazem coisas inexplicáveis em função do prometido em suas campanhas. Parece que o Diploma Eleitoral muda o DNA do candidato, agora diplomado. Isto aconteceu com a legião de deputados e senadores de primeira eleição. Se esperava que fossem mudar as coisas no Congresso e o que se vê é a continuidade daquilo que todos abominamos.

 

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 2 de junho de 2021

NYIRAGONGO SALLES

O vulcão Nyiragongo, na República Democrática do Congo, entrou em erupção no dia 22 de maio. Outro, o Murara, que está em área desabitada, também entrou em erupção. A cidade de Goma, que está a mais ou menos 12 km de distância do Nyiragongo, teve lavas vulcânicas que chegaram a 300 metros, pelo que, as autoridades pediram que os habitantes a deixassem. Muitos foram à vizinha Ruanda. Na área próxima à cidade de Goma, se fala em quase dois milhões de habitantes.

Desde 1882, ele entrou em erupção ao menos 34 vezes, e em algumas vezes ficou dois anos em atividade. A recente erupção causou a morte de 32 mortes até o momento e a fuga de dezenas de milhares de habitantes.

Vulcões, em certa medida, são previsíveis quando devidamente monitorados. Microssismógrafos colocados nas encostas e em escala ascendente, mostram, com bastante precisão, a entrada da lava no cone, o que, aliado ao monitoramento da temperatura na boca e no interior dela, dá condições de se prever suas atividades. Alertas com cores são emitidos. Assim foi com o Pichicha, em Quito, quando lá morei.

Da mesma forma se pode prever o surgimento e caminho dos tornados, furacões e tufões. Quando vivíamos em Chicago, em área que é caminho dos tornados, a TV anunciava em notas de rodapé a previsão de tormentas e tornados e mostravam, com certa precisão, o horário que poderia acontecer.

Não são assim os terremotos. Até o momento nada indica certa previsibilidade. O que se sabe é que certas áreas são mais susceptíveis e o máximo a fazer é se prevenir para algo que é imprevisível.

O mesmo raciocínio se pode aplicar à administração pública. Há áreas com previsibilidade sísmica, ainda que não se tenha instrumentos confiáveis para a detecção a priori.  Só dá para correr atrás dos estragos. Penso que um exemplo disto são as fraudes fiscais, no INSS, no ICMS, no IPTU etc. O que se faz é colocar a polícia para correr atrás do prejuízo. Por mais que se criem mecanismos de controle, as atividades sísmicas contornam os obstáculos, abrem fendas, destroem coisas construídas e matam pessoas. Veja o exemplo dos desvios na merenda escolar, nas verbas da saúde, para citar dois exemplos.

Há, no entanto, tal como os vulcões, atividades ruinosas que podem ser monitoradas com sensores. Uma delas é o que está acontecendo com o ministro Salles. Os microssismos evidenciavam que o vulcão ia entrar em erupção. Investigações, denúncias, defesa dos madeireiros, aumento do desmatamento, redução da fiscalização, inativação por falta de recursos econômicos de organismos ambientais, advocacia administrativa.

Deu no que deu. Um delegado da PF que ligou os sensores, mostrou que o vulcão podia explodir. Quem devia tomar providências para minorar a crise dormiu no ponto. Um sismógrafo nos Estados Unidos detectou lavas no carregamento de madeira exportada. O STF mandou investigar, a PGR foi provocada, a denúncia formal foi encaminha à ministra relatora e o vulcão está lançando lavas para fora. E tem lava para todos, até, segundo o COAF, nas contas pessoais e no aumento inexplicável do patrimônio.

Com o vulcão principal também o secundário: a presidência do IBAMA. Sensores indicavam atividades sísmicas e decidiu-se expelir a lava antes que ela rolasse morro abaixo, o que, com o tempo, saberemos se a decisão resolveu o problema.

Vivemos em área sísmica e tem gente dormindo sobre os sensores e se gabando que no seu governo nunca houve vulcão. A sabedoria popular diz que é sábio “dar tempo ao tempo”.

Marcos Inhauser

 

MENTIRA VERDADEIRA

Aprendi que a verdade é a versão dos poderosos. Devo isto ao Michel Foucault. A verdade, segundo ele, e talvez outros tenham dito algo parecido a isto, é a versão que o detentor do poder dá aos fatos. Ela se estabelece como verdade porque os fracos não têm o poder de se fazer valer ou ouvir. Por isto (devo isto ao guru Zé Lima), a versão dos fracos e sem poder é “sub-versão”.

Ao estudar história, percebi que a história que conhecemos é a versão dos poderosos. Ela é a feita a partir de manuscritos, cerâmicas, construções, obeliscos, pirâmides, santuários, sarcófagos, túmulos dos poderosos. Os pobres e marginalizados não tinham como deixar construções, manuscritos e sarcófagos. Morriam e eram apagados da história.

Ampliando o conceito, a história é a versão dos poderosos nas suas vitórias contra inimigos derrotados. O derrotado não deixava traços. Eram dizimados. Muitas das inscrições do antigo Egito, Babilônia, Pérsia, Grécia e Roma são relatos de vitoriosos. Um outro pequeno trecho de um derrotado apareceu e pouca importância se deu a eles. Um deles é Šutruk-Naḫḫunte. Ele ganhou, muitos séculos depois, uma projeção mínima no curta-metragem “The Palace Thief”, e a adaptação no “The Emperor's Club”. Era um conquistador egomaníaco famoso em seus dias, mas praticamente desconhecido hoje.

A maior coletânea de história sobre marginalizados e pobres se tem na Bíblia. Em uma sociedade extremamente patriarcal e machista, que o Antigo Testamento traga as histórias de Débora, Sara, Hagar, Bate-Seba é surpreendente e inexplicável. Que seja a história de um povo marginalizado, escravizado e peregrino, é também inexplicável. É a maior coletânea de feitos históricos de pobres e excluídos.

Estamos em tempos de uma CPI que investiga fatos relacionados ao poder e busca identificar atos de omissão e comissão no enfrentamento da pandemia. No que pese a imposição legal de que a testemunha tem o dever de falar a verdade, sob a pena coercitiva da lei, temos assistido a depoentes (Fabio Wajngarten, Queiroga e Pazzuelo) mentindo descaradamente. Tiveram a desfaçatez de negar o que escreveram e disseram, no que pese os textos publicados, os vídeos apresentados e as declarações dadas. O campeão das mentiras foi o general Pazzuelo, amparado que estava por um habeas corpus que o eximia de ser preso pela CPI.

Porque estavam no poder e tem o apoio do governo, tiveram a coragem de mentir em rede nacional, na esperança de que, ao apresentar a versão do poder, estariam estabelecendo a verdade oficial e vitoriosa.

Parece que não perceberam que os tempos são outros, que a mídia social está atuante, que as falas são checadas online com as verdades que a grande imprensa, os meios de comunicação e jornalistas investigativos têm mostrado.

Por não terem a “sua verdade” estabelecida, por terem suas falas contraditas, mostra que quem está no poder não tem o poder. Lendo Gene Sharp entendi que uma coisa é ter o posto, a posição, outra é ter o poder. Este é resultado da obediência que o povo lhe presta.

Só posso concluir que falta poder a quem hoje tem a posição de autoridade nacional. Quem usou e abusou de um texto bíblico sobre a verdade que liberta, labora no erro e na mentira, e crê que pode mudar os fatos com sua versão enviesada.

A verdade liberta, diz o texto jesuânico. Que liberdade há nas 450.000 mortes?

Marcos Inhauser

 

 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

DEFENDEM O VELHO USANDO O NOVO

Na teologia há uma tensão entre fundamentalistas e liberais. Os primeiros acusam os segundos de ceder ao mundo e à cultura e de implantar na igreja, liturgias e cultos as “coisas do mundo”. Adoram citar o texto “as portas do inferno não prevalecerão contra ela (igreja).”

Em leitura simplista e enviesada, fazem a dicotomia maniqueísta entre secular e espiritual, mundo e reino, igreja e sociedade. Esquecem-se de que a igreja está no mundo, é feita por quem vive no mundo, é moldada pela cultura “mundana” onde vive, que há aspectos culturais próprios de cada país e região, que as coisas do mundo nem sempre são más ou pecaminosas.

Estes intérpretes não percebem as conotações que a palavra “mundo” tem na Bíblia e nas falas de Jesus. Misturam alhos com bugalhos. Fundamentalistas e, por conseguinte, literalistas, creem na infalibilidade das Escrituras que, na verdade é a infalibilidade de suas próprias opiniões pretensamente bíblicas. Usando um conceito que só apareceu na história da Igreja com os pietistas no século XVII, afirmam algo que a Igreja histórica nunca afirmou. Chegam a sustentar a infalibilidade inclusive das vogais (os textos hebraicos só usavam as consoantes e a vocalização apareceu no século VII com o trabalho dos massoretas). Creem, contra toda a evidência e lógica interna dos escritos, na inspiração verbal e plenária e na inspiração mecânica, onde o próprio Deus ditou as palavras da Bíblia. Até os relatos em que se atribui a fala a Satanás, Deus foi o inspirador.

Agarram-se ao novo para defender o velho. As perguntas mais pertinentes ao texto bíblico, a discrepância entre dois relatos (números no censo, palavras dos dois crucificados com Jesus, as duas narrativas da criação, duas do dilúvio, entre outras) são coisas de herege. Tive um aluno tão ferrenho na defesa da autoria mosaica do Pentateuco, que escreveu um TCC com o título “Direitos Autorais de Moisés sobre o Pentateuco”. Ele afirmava que Moisés escreveu até o relato de sua morte, porque Deus havia revelado a ele por antecipação!

Condenam o uso de música popular nas igrejas, mas ficam extasiados ao cantar o hino nacional da Inglaterra ou da Alemanha com letra religiosa. Dão um tempero religioso às músicas country dos EUA, mas proíbem os ritmos nacionais.

Afirmam a família monogâmica como plano de Deus, mas se esquecem que a poligamia era a norma no Antigo Testamento. Só no Concílio de Latrão, em 1215, a igreja elaborou a legislação do matrimônio. O sacramento apareceu em 1439, no Concílio de Florença.

Desde o século VIII a igreja defendeu a monogamia. Os reis francos eram polígamos e isto exibia a riqueza, poder e alianças políticas. Um deles teve seis esposas! Isto interferia em questões dinásticas. A reforma gregoriana no século XI definiu que clérigos deviam ser celibatários e os casados monogâmicos. Nunca foram fiéis às exigências da Igreja. Concubinas e amantes resistiram. Com o tempo a poligamia se enfraqueceu.

Usam o modelo de famílias pequenas (de dois filhos) e defendem que os filhos são benção do Senhor e quanto mais se tem, mais abençoado é: era mão de obra para os campos e guerreiros para defender a terra. Exigem o casamento no civil para oficiar o religioso, mas se esquecem que isto só surgiu no século XIX. Antes era um acordo comercial entre famílias. Exige-se amor para o casamento, coisa que só apareceu depois do século XVI.

É muito barulho prá minha cabeça!

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

O TRÔPEGO E O EQUILIBRISTA



Tenho meu lado masoquista. Já tentei por três vezes ler o Ulisses de James Joyce, algumas vezes o Capital de Marx, Crítica da Razão Pura do Kant e algumas obras de Hegel, e a mais hermética delas, O Espírito da Lógica. Desastre anunciado. De cada frase lida entendia um terço, se é que entendia. Há outras que nunca consegui ler, por pura assintonia com o tema e seu desenvolvimento: Pequeno Príncipe e Meu Pé de Laranja Lima.

Já tive outros surtos em noites de insônia: escutar sermões de pregadores da prosperidade na madrugada. Nada se compara às intermináveis alocuções de ministros do STF em seus votos, que já ouvi por horas a fio.

Dito isto, afirmo que assisti a todo o depoimento do ministro Quiroga à CPI da Pandemia. Dos outros dois anteriores vi partes, pois presumia que já sabia o que diriam e que nada muito bombástico sairia, mas que não se furtariam a tisnar a reputação do “impoluto”. No caso do Quiroga, dada as circunstâncias de sua nomeação, logo após a recusa de uma médica por perceber que não teria autonomia (e isto ela afirmou ao explicar a recusa ao convite), me dava certo interesse. E lá fui eu exercer este meu lado de sofrimento.

À medida que ouvia as perguntas e lia a expressão corporal do questionado, percebia o extremo desconforto do ministro. Mesmo nas perguntas e/ou “defesas”, o seu corporal mostrava a sua incômoda situação. À medida que a inquirição avançava, uma coisa acontecia comigo: não saía da minha cabeça a música do João Bosco, eternizada pela Elis Regina, O Bêbado e o Equilibrista. Diante das perguntas que se referiam às trôpegas ações do Ministério da Saúde, o equilibrista tentava se manter em pé, sem derrubar ninguém e esforçando-se para não cair ou ser caído.

Com o DNA de quiabo, escorregava. Tal como porco ensebado em festa caipira de São João, ele escapava das tentativas de ser agarrado. Até broncas públicas ele levou por sua técnica evasiva de responder sem se comprometer. Ele sabia que, se não mantivesse a postura de se equilibrar na corda bamba, derrubaria o trôpego. Efeito dominó: se ele cai, leva mais gente junto. Também zelava seu currículo para ser tão breve quanto foi o Teich.

A música estava cada vez mais forte e comecei a ter vontade de cantá-la, especialmente alguns versos: “Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto / Me lembrou Carlitos / A lua tal qual a dona do bordel / Pedia a cada estrela fria / Um brilho de aluguel / E nuvens lá no mata-borrão do céu / Chupavam manchas torturadas / Que sufoco! / Louco, o bêbado com chapéu coco / Fazia irreverências mil / Pra noite do Brasil, meu Brasil / Que sonha com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete / Chora a nossa pátria, mãe gentil / Choram Marias e Clarisses / No solo do Brasil / Mas sei que uma dor assim pungente / Não há de ser inutilmente / A esperança dança / Na corda bamba de sombrinha / E em cada passo dessa linha / Pode se machucar / Azar, a esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que continuar.

Confesso que, na minha versão cantada, troquei umas poucas palavras para ser mais atual, ainda que nem sempre obedeci a métrica e as tônicas. E eu cantando a minha versão fui mais desafinado que o depoimento do ministro.

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 5 de maio de 2021

QUANDO É O FUTURO?

Nunca fui de ler romances ou contos. Li vários, mas sempre gostei mais de livros mais conceituais. Ainda no início da adolescência li, de Stefan Zweig, “Brasil, o país do futuro”. Fiquei encantado e o sonho do futuro embalou muita coisa na adolescência e juventude. Acreditava piamente que o Brasil era o país do futuro. Empolguei-me com o Juscelino e a construção de Brasília e pensava: “agora vai!”

A cada pouco ouvia algum político de renome repetir a frase ou a ideia e isto mexia com meus brios. Acreditei no Jânio Quadros com seu símbolo da vassourinha e o jingle “varre, varre vassourinha”. Era, para mim o futuro chegando. Estive, criança ainda, em um palanque em que ele discursava e tenho uma foto ao lado dele, em cima da carroceria de um caminhão.

No final de 1965 fui morar em El Salvador e me lembro de quantas vezes tive conversas e discussões acaloradas, dizendo aos colegas de escola que o Brasil era a potência dos anos 2000. Veio a ditadura. Tios e primos apoiavam os militares e eu ficava meio perdido. Lia dois jornais por dia, estudava em colégio com alguns críticos, lia o Pasquim assim que saía. Conseguia comprar escondido porque as bancas que o vendiam eram incendiadas. Acompanhei pari passu os eventos do Restaurante Calabouço, a morte do estudante, a revolução da UNE contra o acordo MEC-USAID. Achava que Guilherme Palmeira estava liderando a marcha para o futuro. Voltei de El Salvador no final de 1966 e vibrei com os festivais de música e meu hino passou a ser a canção de Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

A ditadura demorava para acabar. Ficava sabendo dos horrores nos porões do DOI-CODI e tive um amigo preso que nunca mais soube dele. Parece que o combustível do sonho que havia em mim estava acabando. Entre o Brasil do futuro e o Brasil da realidade, a energia foi sendo exaurida. Comecei a ficar cético e algumas vezes irritado quando alguém afirmava Brasil-potência, país do futuro, o Brasil tem tudo para dar certo. Uma frase começou a aparecer na minha mente cada vez que ouvia isto: “ou acabamos com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Ela estava em um pacote de veneno. Eu sabia onde estavam as saúvas, mas faltava o veneno.

Tive um lampejo de ânimo quando soltaram o plano Cruzado. Ingenuidade. A saúva acabou com a proposta. Não conseguia acreditar no Sarney (e ainda não consigo, pois o acho a saúva mor). O que veio depois foi acentuando minha desilusão quanto ao futuro. Comecei a questionar o sistema partidário, as eleições via marketing, o sistema bicameral, a capacidade de eleger gente nova para o sauveiro central. A cada dia que ouço os jornais, tanto no radio como na TV, que leio o jornalismo de opinião, que recebo as mensagens, as mais variadas, nos grupos de WhatsApp, mais me desencanto com o país do futuro.

A cada reunião do STF tomo uma injeção de depressão. Um desfile de narcisos que não me convencem da imparcialidade e impessoalidade que devem nortear seus julgamentos. Quando ouço o Lira ou o Pacheco, a vela com luz tênue leva um sopro e apaga. Nunca me lembro de ter ouvido tanta babaquice de expoentes da política nacional. Parece que recebem mídia training para falar non senses. Agora de manhã ouvi a entrevista do Ciro Nogueira acusando o Mandetta de ser show man e defendendo o Pazuello.

A pergunta vem forte à mente: quando é o futuro? Eu o espero há 60 anos e nada dele. Seria algo parecido ao romance “Esperando Godot”?

Ele azedou o meu dia!

Marcos Inhauser

 

 

quarta-feira, 28 de abril de 2021

ACENDERAM-SE OS HOLOFOTES

Ontem, às 10:00 da manhã, acenderam-se os holofotes para a visibilidade de narcisistas e pré-candidatos a governador e reeleição para o Senado. A CPI da Pandemia está instalada, depois de vários embates, inclusive jurídicos.

A julgar pelos dois momentos iniciais, tem-se um dilema. Ela pode ser um circo, com todos querendo falar ao mesmo tempo, um monte de pedidos de ordem e questões de mérito, ou ser algo mais disciplinado que foi o que se viu nas primeiras intervenções do presidente Omar Aziz, que, ao que parece, foi firme nas suas primeiras intervenções.

Digo isto porque, a julgar pelo que já aconteceu nestas duas primeiras horas e pelo que aconteceu nesta CPI e outras CPIs e CPMIs, o que mais se busca é o tempo de exposição na TV. Estranha-me também que nesta foi dada a palavra ao Flávio Bolsonaro para que fizesse a sua peroração, quando nem membro dela ele é. Se quem quiser falar lhe será facultada a palavra, o circo vai pegar fogo!

O uso desta máquina pública e a evidência que esta CPI tem, dado o momento vivido pelo Brasil, será oportunidade ímpar para que cada qual e, especialmente os candidatos, busquem seus minutos de glória com as câmeras ligadas. Os dois do Amazonas, um deles pré-candidato ao governo do Amazonas, não deixarão escapara a oportunidade de se cacifar política e eleitoralmente. O mesmo se dará com os demais pretendentes ao cargo de governador.

A questão levantada sobre a natureza da CPI: ela é julgadora ou investigadora? A definição é fundamental para o transcorrer dos trabalhos e para o veredicto final. Em ambos os casos, haverá dano aos investigados, com o julgamento breve ou mais demorado, a depender do Ministério Público que receberá a conclusão das investigações e da Justiça que, ao longo da história tem-se mostrada leniente e modorrenta no trato das questões relacionadas às personalidades públicas.

Há que notar-se que nenhuma CPI teve tantos dados evidentes e públicos para chegar ao seu ponto fulcral. Gravações, vídeos, notícias, declarações, relatórios do Ministério da Saúde e do Consórcio de Jornais e Meios de Comunicação, a quantidade de mortos, a ilogística das vacinas, as asseverações e retratações sobre que quantidade de vacinas, os enfermos levados para outros estados, a crise do oxigênio, os fura-fila, o desvio de verbas pelo superfaturamento ou compra e pagamento adiantado do que nunca chegou e quando chegou não atendia às necessidades médicas, etc.

São tantas as coisas que, se não houver foco, não se esclarecerá nada. A lógica milenar de que investigar tudo é investigar nada pode ser aplicada a esta CPI. A tentativa de fazer com que também investigue governadores e prefeitos está dentro desta premissa: investiga-se tudo para concluir nada. E nada é o que menos interessa ao povo brasileiro, pois, temos 400.000 mortes que pedem esclarecimentos e justiça.

É papel da CPI fazer justiça? Não! Isto é papel do judiciário. Mas ela tem o dever de trazer à tona os dados claros e inequívocos para que o judiciário faça a sua parte, dia a quem doer, ainda que nesta Brasil, a regra áurea de que “somos todos iguais perante lei” me faz recordar a frase célebre de Orwell em sua obra “Revolução dos Bichos”: todos somos iguais, mas alguns são mais iguais. Recentes decisões me fazem crer que o Orwell está coberto de razões.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 21 de abril de 2021

LENDAS BRASILEIRAS

O Brasil tem várias lendas rurais e urbanas. Aí estão o Saci Pererê, Curupira, Mula sem Cabeça, Lobisomem. Lenda é uma narrativa com forte acento no fantasioso e transmitida oralmente. Combinam a realidade e história com irrealidades, produto da imaginação. A tênue linha demarcatória é, muitas vezes, difícil de ser definida, a depender de quem faz a análise e o seu interesse no enredo e resultado.

Uma das lendas brasileiras é a Constitucional, no artigo 5º.: "Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade ...” Quem acompanha de perto o judiciário brasileiro e o STF, fica a duvidar de que isto seja verdade. A celeridade com que certas celebridades conseguem chegar ao STF e ter o seu HC julgado, o seu pleito discutido longamente pelo plenário, a sua sentença revisada por filigranas jurídicas (vide o caso Bendine), fica com a impressão de que só chega ao STF quem tem “munu$” para pagar uma banca de advogados. A média de três meses para o julgamento só vale para a massa da população. As “otoridades” conseguem que seu pleito seja julgado em prazo de dias.

Outra lenda é que o pedido de vistas é um procedimento para que o juiz tenha mais tempo para julgar a ação. Percebe-se que é um instrumento protelatório para que a parte interessada tenha mais tempo para acomodar o pleito. Veja o caso do HC que o Lula impetrou e que ficou dois anos na gaveta do Gilmar e que, em função de uma decisão do Fachin, ressuscitou como que por encanto.

Muitas vezes pensei que há juízes que atropelam mínimos requisitos (e o fazem deliberadamente) para que, mais tarde, o julgado possa ser inocentado por erro processual. A esperteza no uso das vírgulas pode ter seu custo e há inúmeros exemplos de juízes, desembargadores e ministros que foram denunciados por “azeitar” o processo.

A terceira lenda é que o Congresso é a casa do povo e, como tal, advoga os interesses da população. Espremo minha memória para encontrar fatos em que, de forma clara, isto foi verdade. O que me vem à mente são votações e decisões que privilegiam as “excelências”. Esta semana fomos agraciados com duas: a que não permite o uso de escuta ambiental por parte da investigação e acusação, mas a habilita para uso da defesa. Ponto para os bandidos. A outra é a aprovação de um orçamento recheado de contabilidade criativa, onde a realidade das verbas parlamentares impera e que se danem a população, a saúde, a educação, a segurança pública.

A terceira lenda é que o presidente tem o poder da caneta. Ele é mais uma marionete atada à cadeira presidencial, fazendo o que interessa o grupo que o apoia. Veja os exemplos dos ministros que foram para a frigideira por conta da “pressão popular”: Moro, Mandeta, Pazuelo, Marcelo Antonio, Decotelli, Araujo e outros. Faça-se constar a capacidade do centrão de manipular decisões, como é o recente caso das verbas destinadas aos deputados, a nomeação da ministra Flávia Arruda por “indicação” do Lira.

A quarta é que o sistema eleitoral brasileiro é democrático, que todos os candidatos estão em igualdade. Mentira! Como competir com a reeleição de vereador, deputado ou senador que têm assessores, verba parlamentar e dinheiro para financiar a campanha? Explica-se assim o baixo índice de renovação do Congresso.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 14 de abril de 2021

DEIXAR FUNDIR O MOTOR

Imagine a seguinte situação: alugo um carro porque quero fazer uma viagem de quatro mil quilômetros. Há todo um regulamento para o uso do veículo e garantias de assistência técnica. Depois de uns setecentos quilômetros, percebo que o carro não era o que eu desejava. Havia contratado um carro com potência e certos confortos e percebo que ele não é lá estas coisas. Mas como tenho que viajar, fui andando com ele, lamentando a distância entre a expectativa e a realidade.

Quando estava lá pelos dois mil quilômetros percebo que o motor estava vazando óleo e o consumo havia aumentado significativamente. Levo o assunto à locadora que culpa o fabricante do carro, o óleo nacional, a gasolina. Pergunto se podia trocar por outro e recebo a resposta que não podia. Pergunto se podia parar em uma oficina para ver o que acontecia e me dizem que só se fosse nas oficinas da própria locadora e a que está mais próxima está a mil quilômetros.

Aciono a ouvidoria da empresa e o assunto vai para a gaveta. Aciono o Procom e este pede que a locadora imediatamente faça um diagnóstico nas condições do carro. Na hora de fazê-lo, sou aconselhado a não mexer agora que estou no meio da viagem e que isto atrapalharia os planos e a imagem da locadora. Pergunto o que faço e ouço a resposta: deixa fundir o motor!

Nesta quarta o STF deve se pronunciar sobre a conveniência ou não de se instalar imediatamente a CPI da Pandemia. Há quem argumente que fazer este diagnóstico para a falta de potência e vazamentos de óleo do motor presidencial e do Ministério da Saúde é complicar o momento que vivemos, que traria estresse ao sistema, que há indevida interferência do Judiciário no Legislativo, que haveria uma crise sistêmica, blá, blá, blá.

O motor do Executivo está perdendo potência a cada quilômetro rodado. Vaza óleo de todo lado e não entrega o que prometeu e contratado foi. Questionado, culpa Deus e todo mundo, mas nunca assume a responsabilidade pelos erros e caos. Prefere se interessar pelo som do carro e não pelo motor que dá sinais de problemas sérios.

Quando se pede para fazer um diagnóstico, vem com a conversa de que seria melhor fazer um checkup completo, ou ele, na marra, manda fazer uma retífica no motor. Tentou dar uma ajeitada na coisa, trocou umas peças, tirou umas daqui e colocou ali, chamou algumas novas, todas do seu bairro, e a coisa não rende, não anda.

Aguardemos a resposta oficial para o problema: ou se faz o diagnóstico ou continua rodando e deixa o motor fundir!

Marco Inhauser

quarta-feira, 7 de abril de 2021

QUASE 70% NOS SEUS 70

Eu a vi pela primeira vez quando ela foi à frente em um culto para participar de um trio feminino. Perguntei à minha mãe quem era a moça do meio: “uma moça que quero que você a conheça”. Naquela hora, abaixei a cabeça e agradeci a Deus a esposa que Ele estava me dando. Foi em dezembro de 1972. Esta convicção nunca mais saiu de mim.

No Natal de 1973, nós nos casamos. Lá se vão mais de 47 anos. Quase 70% da nossa vida vivemos juntos. Muitas coisas em comum nos fazem grudar um no outro, ao ponto de um dia uma pessoa dizer que somos como cangurus: sempre um levando o outro na bolsa. Não há uma música que eu ou ela goste e que o outro também não. Na comida, temos gostos comuns, ainda que eu coma algumas coisas que ela detesta (camarão, bacalhau, ceviche) e outras que ela come e eu não (abobrinha, chuchu, rabada, canja).

Nunca ela usou uma roupa que eu tivesse que fazer algum reparo, ainda que, muitas vezes, tive que trocar a minha porque ela disse que não combinava. Nunca a vi sem estar acima da média em termos de roupa, cabelo e elegância. Ela é uma referência no vestir-se, arrumar-se e tem sua identidade até no perfume que usa.

Companheira de ministério, é mais pastora que eu. Ela tem carisma e energia, sabe ser agregadora, sabe aconselhar, tanto que há mais de 30 anos trabalha com terapia familiar e o faz brilhantemente. Sou meio tímido, ela é extrovertida. Onde chega sabem que ela chegou e já vai fazendo amizades. Tem um dom sobrenatural de “arrancar” coisas das pessoas e, em poucos minutos, já sabe da vida e dos problemas delas. Quando damos palestras ou cursos, é “alugada” por gente que quer conversar com ela.

Nossa vida foi marcada por algumas coisas. Viajamos muito. Chegamos a viajar 24 horas seguidas. Passamos inúmeras noites em viagem (prefiro viajar a noite por uma série de razões). Escutamos horas a fio, nas viagens, músicas que gostamos. No tempo das fitas K7 tínhamos uma caixa com umas 40. No tempo dos CDs era uma pasta com uns 150. Com o advento do Ipod e dos Pendrives, temos mais de 18.000 músicas que escutamos com prazer único. Somos movidos à música.

Boa parte da vida passamos dando risada, ora porque soubemos ver graça em eventos cotidianos, ora porque cutucávamos um ao outro. Ela tem riso mais fácil que eu, mas juntos já choramos de tanto rir.

Ambos temos um lema: ser instrumento de paz e benção para o outro e para os outros. Nossa casa sempre foi aberta e hospitaleira (ela herdou isto da mãe dela). Na minha família não havia festa de aniversário. Não me lembro de nenhuma na minha infância. Quem trouxe isto foi ela. E era festa de Natal, de Páscoa, de Ano Novo. Ela arregimentava a família e nos reuníamos.

Ela me perdoou muito mais vezes que as que eu pedi perdão (segundo ela foram poucas as vezes que eu fiz isto – ela tem memória fraca...kkk). Errei com ela muito mais vezes que ela errou comigo. Nem por isto estamos sem fazer a conciliação de créditos e débitos, porque a generosidade dela sempre foi abundante.

Nos seus 70 anos, completado hoje, ela tem uma multidão de gente que aprendeu algo com ela, que foi ajudado, que foi aconselhado, casamentos salvos ou refeitos. Ela foi e é uma benção. Muita mais na minha vida.

Obrigado Deus por ter-me dado esta graça concreta para viver comigo nestes anos todos!

quarta-feira, 31 de março de 2021

Páscoa, lições da páscoa, serviço, isolamento, medo

O mundo cristão ocidental celebra a Semana Santa, quando faz recordação dos eventos últimos da vida de Jesus, sua morte e ressurreição. Há nos eventos uma velocidade porque, no domingo de Ramos, ele entra em Jerusalém aclamado como rei. Dias depois ele está celebrando a Páscoa com seus discípulos, logo em seguida vai ao Getsêmani e ali sofre todo os sofrimentos ao ponto de suar sangue. Na mesma noite de sexta é preso por causa da traição de um dos seus. É apresentado a Pilatos e Herodes. Os mesmos que o aclamaram estavam agora a pedir sua crucificação.

Da glória à extrema humilhação em poucos dias. Paradigma da vida humana, pois também já tivemos experiências de sair de uma situação de conforto e nos vermos atirados à sarjeta. Muitas lições já foram tiradas destes eventos e trazer alguma novidade sobre ele é tarefa inglória. No entanto quero ressaltar alguns aspectos desta trajetória do Mestre nestes seus momentos derradeiros.

A primeiro é que ele foi traído por um deles. O traidor tinha recebido um voto de confiança do grupo e foi nomeado o tesoureiro. O texto joanino afirma que “era ladrão e, tendo a bolsa, tirava o que nela se lançava” Jo 12:6). A experiência de ser trapaceado por um amigo próximo ou parente é algo tão antigo quanto comum na história. Como diz o ditado “de onde menos se espera é que vem a decepção. Traição só existe quando há entre os traídos e o traidor algum nível de relacionamento e confiança. Levar a rasteira de um amigo ou irmão é algo muito dolorido.

O segundo evento é o da mulher que ungiu os pés de Jesus com o vaso de perfume. Ela quebrou o frasco para ungir os pés do Senhor. Ela se colocou de joelhos à frente do Mestre para servi-lo, símbolo de quebrantamento, de contrição, de serviço e estes elementos são essenciais na vida cristã. Precisamos nos colocar aos pés do Mestre para sermos quebrantados, permitindo exalar o bom perfume de Cristo. É nos despojar-se de coisas em favor do outros, até mesmo as mais valiosas, que mostramos o amor concreto. E quando amamos o irmão ou irmã na concretude de suas necessidades, amamos ao próximo e a Deus. Assim ensina a primeira epístola de João.

O terceiro evento está relacionado à deturpação que havia sido cometida no Templo, onde os mais variados tipos de comércio se davam, cambistas exploravam e sacerdotes vendiam bençãos. Os tempos são outros e a coisa permanece. Templos atuais estão mais para shopping centers da fé, onde “agraciados com o dom de Deus”, vendem benção, cobram por exorcismo fantasiosos, ensinam barbaridades. São Templos ao deus prosperidade. Virou “show da fé”. E estes mercadores da palavra se arvoram em porta-vozes da Igreja e fazem as bajulações para que suas dívidas fiscais sejam perdoadas, como realmente foram.

O quarto evento se refere à atitude dos apóstolos logo depois da crucificação. Por medo, se isolaram e se trancaram dentro de casa. No que pese este comportamento, o Mestre foi até eles e os encontrou e soprou sobre eles o Espírito e disse: “Paz seja convosco”. Estamos em tempos de reclusão, de medo, de isolamento, mas mesmo nestes momentos recebemos a mensagem: “paz seja convosco”. Era o ressurreto. Precisamos de ressurreições nestes tempos que vivemos.

Mais do que nunca ansiamos por esta paz (o sentido de paz no hebraico também é saúde). Queremos a paz de Cristo e não o caos que o Pilatos moderno impõe sobre a população.

Marcos Inhauser

 

 

quarta-feira, 24 de março de 2021

O MAIOR COVEIRO DA HISTÓRIA

Tenho para comigo esta pergunta de forma constante. Lendo e pesquisando livros de história, soube de alguns déspotas que se notabilizaram pela crueldade com que trataram os adversários e inimigos. Muitos fatos históricos não são tão precisos quanto gostaríamos de que fossem. Por exemplo, fala-se de 50 a 100 milhões de mortes com a gripe espanhola. Se considerarmos que ela ocorreu no início do século 20, a imprecisão nos leva a questionar os números de outros massacres perpetrados. Há dois lados na história: a do vencedor que inflou os números para mostrar que era mais cruel e poderoso do que na realidade foi e as dos perdedores que também inflam para execrar o genocida.

Em conversa com chineses sabe-se do massacre perpetrado em Nanjim pelos japoneses, também conhecido como “estupro de Nanjim” que foi o assassinato e estupros cometidos por tropas do Império do Japão durante a Segunda Guerra Sino-Japonesa. Ele ocorreu durante seis semanas em dezembro de 1937. Dezenas de milhares, se não centenas de milhares de civis chineses e combatentes desarmados foram mortos. Perceba-se outra vez, a imprecisão dos dados.

O mesmo ocorre com a Alemanha nazista. Fala-se em 6 milhões de judeus mortos. O número redondo me mostra que também é impreciso e pode ter sido mais ou menos. Acredito que pode ter sido inflado como para caracterizar o papel de vítimas.

Já assisti a alguns filmes e documentários que tentam reconstruir os fatos históricos. Mais recentemente assisti Operação Final, sobre Eichman, figura poderosa no entorno de Hitler e que fugiu para a Argentina, onde vivia como pacato cidadão, trabalhador em uma empresa alemã. Também vi o filme sobre o médico Mengele e como foi descoberto.

Há na história grande genocidas. Alguns deles: Hitler, Mussolini, Napoleão, Stálin, Pinochet, Saddam Hussein, Idi Amin Dadá, Mao Tse Tung, entre muitos outros. Percebe-se que uma pessoa pode entrar para a história pelos atos positivos que o caracterizaram (Mandela, Churchil, Eisenhower, Lincoln etc.) ou como exemplos a não serem seguidos.

O que me preocupa é que tem gente que, mesmo sabendo quem foram, ainda os venera. É o caso mais explícito dos neonazistas que endeusam o Führer e querem estabelecer governos que retomem as práticas nazistas. Há quem venere o Pinochet e quem queira o retorno da ditadura militar no Brasil. Parece que não aprendem com a história. E quem despreza a história só pode construir barbaridades, porque não aprende lições fundamentais para a vida em sociedade.

Quando vejo estas histórias de mortandade eu me pergunto: quem foi o coveiro destas vítimas? Olhando filmes e documentários onde valas eram abertas, os prisioneiros, inimigos e dissidentes eram colocados dentro e fuzilados, nada se fala sobre quem foram os que jogaram a terra e sepultaram os mortos. Coveiro não entra para a história. Ele é pária, faz o papel menos reconhecido na história: torna invisível as atrocidades cometidas, porque, com seu trabalho, encobre os massacres. O coveiro é um parceiro dos genocidas? Em certa medida sim. Por outro lado, tal como Eichman e os militares argentinos, vão se justificar com a “obediência devida”. Não tinham poder para desobedecer. Se o fizessem seriam sepultaram por outros coveiros obedientes.

Nunca vi alguém se gabar de ter enterrado número significativo de mortos. O que vi foram coveiros lamentando de ter que trabalhar tanto, como é o caso dos que sepultaram corpos em Manaus.

Em tempos fúnebres, uma reflexão sobre coveiros!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 17 de março de 2021

LINGUAGEM E IDENTIDADE

Vi, hoje de manhã, notícia dando conta de um programa desenvolvido pela USP-São Carlos, que “faz correções na redação e dá notas” muito próximas às do ENEM. Lembrei-me que, em 1992, quando vivia nos Estados Unidos e devia escrever minha tese para o mestrado, comprei o Gramatik, que se propunha a me ajudar no inglês, especialmente preocupado que estava com as questões das preposições. Ele me ajudou parcialmente, pois o sistema ainda era precário.

Mais tarde, passei a utilizar alguns outros recursos e, quando tenho que escrever em inglês, utilizo outro programa, que tem me alertado para uma dimensão que não havia me preocupado. Ele refaz minhas frases, inverte a ordem das minhas palavras, para me ajudar a ser mais natural, profissional ou técnico na escrita. Comecei a perceber que o que saia não era eu. Era outro ser dizendo o que eu gostaria de dizer. Mais: comecei a me perguntar se o que “escrevo” ao final destas “correções” não é o estilo médio de todo o mundo e minha identidade se perde?

Jaques Ellul em seu livro A Palavra Humilhada, já alertava para esta dimensão da mesmerização da linguagem. Passei a falar a linguagem que não expressa os meus sentimentos, emoções, minha versão da história. É um discurso escorreito na construção, mas sem identidade. Comecei a me preocupar: estava perdendo minha identidade. Ellul chama a atenção que a TV, ao eliminar o texto escrito, faz perder o rigor das palavras. A profusão das imagens como que assassina o polissêmico das palavras proferidas pelo personagem/autor das histórias.

Ao ser colunista, tenho que expressar o que penso, sinto, entendo, critico e valorizo. Isto deve ter minha identidade. Não posso escrever o que esperam que eu escreva ou que gostariam que escrevesse. Nas reações que recebo ao que escrevi, vejo uma certa simetria nos comentários, especialmente os que me criticam, como se o que dissessem são fruto de uma mesma fonte, sem o toque da individualidade criativa.

Preocupado com isto e, diante de algumas mortes de pessoas de meu círculo de relações, chamou-me a atenção para as mensagens de condolências postadas. Uma profusão de jargões religiosos, repetição do óbvio, coisa sem identidade, sem sentimento explícito. “O discurso religioso só adquire vida quando serve de apoio e de lançamento de uma palavra pronunciada, anunciada, proclamada, atual, viva, porque saída agora das páginas de um livro para voar em direção a um ouvinte” (Ellul, pg 48)

Há outra dimensão. O discurso de todo poder totalitário é justamente silenciar a novidade da linguagem. Ele utiliza a linguagem de baixo nível para se comunicar com quem tem visão reduzida de mundo. Como disse o Wittgenstein: "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo". Onde a linguagem é obrigada a silenciar, aí encontramos a humanidade diminuída, humilhada. A censura é um estupro comunicacional. O “cala-a-boca” é um ato de assassinato do outro pela imposição do silêncio que o priva da fala identitária.

Estudando a história da Igreja para dar um curso sobre os Pré-reformadores e Reforma, percebi que a palavra na Idade Média é uma fala mecânica, repetitiva, sem nexo com a realidade da vida. A linguagem da Reforma era mais cheia de vida, com densidade emocional e que respondia às angústias dos ouvintes. Não é para menos que Lutero tenha dito, diante da repercussão de suas teses, que os anjos se encarregaram de proclamá-las.

A palavra vai sendo humilhada nas postagens das redes sociais. O Ellul não viveu para ver esta fábrica de mesmices. Se tivesse vivido, teria morrido de infarto.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 10 de março de 2021

LEMBRADO PARA SEMPRE

Uma das necessidades intrínsecas do ser humano é a da realização. Todos precisamos fazer algo para dizer que fomos nós que o fizemos. Em certa medida, somos avaliados pelo que fazemos, mais do que somos ou temos. A crise da meia-idade no homem fica mais acentuada se, ao olhar para trás, ele não fez nada do que possa orgulhar-se.

Esta necessidade é irmã gêmea de outra, a do reconhecimento. Precisamos ser reconhecidos como pessoas que somos, atuantes e fazedoras. Se alguém faz algo sem que ninguém note o que ele está fazendo, deixará de fazê-lo depois de um tempo, salva se for um louco totalmente desligado da realidade. O trabalhado invisível é um mito. Todos, sem exceção (pelo menos na minha ótica) precisamos de alguém que saiba do que fazemos. Isto leva a uma regra do trabalho: toda pessoa que faz qualquer coisa sem ter que reportar a alguém, ou deixará de fazê-lo ou nunca o fará com excelência.

Todos sonhamos em fazer algo que nos perpetue na memória dos outros. Com facilidade incrível dizemos que isto ou aquilo é um “marco histórico”, “algo que vai entrar para a história”, porque necessitamos crer que nossos atos serão lembrados ad eternum.

Estas considerações servem para introduzir minhas reflexões sobre a história da teologia e o seu processo (e)(in)volutivo.

Este processo de pensar o como a teologia foi feita e como ela se consolidou vem tomando minha atenção há muitos anos. Se me lembro bem, ainda estudante de teologia, fiz um curso de teologia patrística, tentando entender como os pais da igreja pensavam a sua fé. Lembro-me que fiquei estupefato ao ler o “Pastor de Hermas” e a “Didaque” e perceber como havia nestes escritos uma grande ênfase nas obras como asseguradora da salvação. Mais do que isto, percebia, ainda que não sei se corretamente, como certas colocações cheiravam à necessidade das obras para a própria salvação.

Desta preocupação nasceu o desejo de ler tudo quanto me foi possível sobre o período patrístico e notadamente sobre as perseguições aos cristãos. Chamou-me a atenção as “Atas dos mártires de Lião”, notadamente a descrição da morte de Blandina. Também a carta enviada por Policarpo aos crentes de Roma, pedindo que não impedissem o seu martírio, porque cria-se que a morte sacrificial por causa do testemunho da fé cristã era forma infalível de garantir a salvação. Mais que tudo, queriam ser lembrados como mártires, e o são.

Recordo que eu me perguntava como o ensino da graça do evangelho de Jesus pode, em tão pouco tempo ser desvirtuado para uma salvação sinérgica, onde trabalho humano e graça divina atuam conjuntamente para a eficácia.

Este processo de desvio se acentuou com as reflexões agostinianas que, ainda que calcada na graça irresistível de Deus, acentuou a obra humana não para a salvação, mas para a santificação. Sou salvo pela graça e isto me capacita para viver atuando de forma a ter uma vida santa. Isto fica evidente no seu livro Confissões, onde o tema do pecado sexual é levado ao paroxismo.

Trago isto à baila porque vejo a quantidade de gente buscando holofotes, querendo ser visto, conhecido e reconhecido, mas que nada vão deixam de se significativo. Não souberam ser benção na vida dos outros, não construíram algo que fosse além de suas vidas. Passaram pela vida em brancas nuvens, a ninguém abençoaram, e deles se esqueceu.

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 3 de março de 2021

OS IDIOTAS ESTÃO PERDENDO A MODÉSTIA

A frase não é minha. É de Nelson Rodrigues, um profeta não templário que o Brasil já teve.

Lembrei-me dele e sua genial frase ao ler alguns comentários postados em blogs de jornalismo de opinião, onde proliferam coisas loucas, com crassos erros de grafia, concordâncias verbal e pronominal, de conjugação verbal (especialmente quando se trata do subjuntivo). Não é necessário dizer que a lógica também é assassinada na grande maioria dos comentários.

Alguém já disse (e não consigo me lembrar quem foi) que as redes sociais abriram os bueiros sociais para que os ratos e baratas saíssem à luz do dia. A proliferação da população opinativa cresceu a taxas geométricas.

Com onze anos idade passei a trabalhar em um jornal. Na adolescência lia três a quatro jornais por dia (e quando do digo “lia” era porque eu lia mesmo). Uma das seções preferidas era a de cartas ao leitor, onde eu via a palavra discordante, o raciocínio bem embasado de pessoas que se preocupavam para escrever ao jornal, mesmo não tendo a certeza de que sua carta seria publicada. Havia até quem reclamava que nunca teve uma carta sua publicada. Sabia disto porque estava dentro da redação.

Naqueles tempos, a opinião era enviada por carta selada e postada, com nome, RG e endereço do missivista. Sem isto, não eram nem consideradas. As cartas eram abertas e previamente selecionadas, e depois o editor do espaço se encarregava de fazer a seleção final e decidir pela publicação ou não. Havia, assim, um filtro. Babaquices, críticas amargas ou azedas, textos confusos não eram publicados, por mais que o missivista enviasse outras tantas reclamando. Ele não tinha “nível” para que sua carta fosse publicada.

Havia quem se especializava em redigir para a seção de “cartas ao leitor”. Li, certa feita, que Carlito Maia (pelo que tenho de informação, era filho de Orosimbo Maia) era a pessoa que, no jornalismo brasileiro, mais teve cartas publicadas e era celebrado pelo conteúdo e qualidade do que escrevia.

O advento das mídias sociais escancarou a coisa. O filtro de um editor foi suprimido e o que se tem é uma avalanche de babaquices, obviedades, coisas sem sentido, teorias conspiratórias, apocalipsismos e milenarismos. Tem-se o cúmulo de alguém defender a volta do AI-5 e pedir a liberdade de opinião, pedir a proteção do STF quando o AI-5 limitou a atuação da corte suprema.

O que se teve foi também a multiplicação de canais “informativos”, onde as notícias são tratadas com viés ideológico de direita ou esquerda, e a verdade sendo tratada ao gosto e interesse de cada um. Surgem os noticiosos de direita, de esquerda, mas o jornalismo investigativo, que publica somente o que é comprovado, é tratado como fábrica de mentiras e distorções. Jornais seculares, com ampla história de serviços prestados, são tratados como se lixo fossem e o encerramento deles é pedido em público.

Na minha experiência, os que tem me atacado nas redes sociais, vou ver o site ou o Facebook deles. A quase totalidade não é de geradores de conteúdo, mas repetidores de memes e reportagens sem lastro na realidade ou em investigações sérias.

Mais: são pertencentes a guetos minoritários de quem se julga dona da verdade, com o direito de ofender. Não raras vezes se escondem no anonimato.

Sinal dos tempos.

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

OS ADJETIVOS NÃO O ADJETIVARAM



No sábado dia 13 faleceu Aziz Miguel João, um tio que ganhei por ter me casado com sua sobrinha. Eu o conheci há 48 anos e aprendi a admirá-lo porque ele tinha qualidades que eu não tenho e o invejava por isto. Nunca o vi bravo e nunca soube de alguma vez que ele tivesse ficado bravo. Isto não significa que tivesse sangue de barata, antes, pelo contrário, tinha seus valores e princípios e não claudicava em preservá-los e vivenciá-los.

Conheci sua mãe, seus irmãos, irmã, sobrinhos, alguns cunhados, primos. Nunca ouvi de nenhum deles uma palavra que fosse alguma crítica ao Aziz. Uma única pessoa lhe fazia alguma restrição porque lhe pediu dinheiro emprestado e ele disse que não emprestaria. A pessoa achava que ele tinha a obrigação de emprestar. Assim era ele: sabia posicionar-se e as pessoas não o viam bravo, irritado, mas sabiam sua opinião e decisão.

Comerciante, teve negócios em Jales, onde viveu boa parte de sua vida. A primeira etapa da vida ele a viveu em Urupês, tendo se casado com a Hania. Depois do casamento é que se mudou e radicou em Jales. Pessoa conhecida e respeitada na cidade por sua honestidade e comprometimento com os princípios evangélicos, foi membro atuante na Igreja Batista. Fazia dos carros que possuía um ministério, conduzindo gente das periferias para assistir aos cultos. Durante a semana visitava cidades vizinhas para levar pregadores e começar novos trabalhos. Não me lembro de alguma vez tê-lo visto pregando e nunca soube que o fizesse. Gostava, sim, de cantar. Tinha voz forte e afinada. Também se arriscava a tocar alguma coisa no piano e no teclado.

No seu sepultamento, por concessão do poder público e pela notoriedade dele na cidade, permitiu-se que o corpo fosse velado no templo da igreja que ele frequentou durante todo o tempo que viveu em Jales. Lá estive e fui vendo as pessoas que se acercavam e ouvi muita coisa que elas disseram às filhas, esposa, netas, neto. Todos exaltando a vida e qualidade do falecido. Comecei a pensar que, como nunca havia visto antes, ninguém precisava exagerar ou mentir para falar dele. Ele não ficou santo depois que morreu: ele já era um santo em vida. Ele era tudo o que as pessoas falavam dele e todos os adjetivos usados não conseguiam dimensionar o caráter, a natureza, a índole e a benção que ele foi na vida de muita gente.

Ele nunca leu Dietrich Bonhoeffer, o teólogo alemão que afirmava que “a missão do cristão é ser Cristo para o outro”. Mesmo sem ter lido Bonhoeffer ele encarnou como poucos que eu conheço esta máxima missional: ele foi Cristo para todos os que cruzaram seu caminho.

Deus me deu a benção de conhecê-lo e conviver com ele nas muitas vezes que o visitei. Algumas destas vezes cruzamos a praça que havia em frente à sua casa, no centro comercial da cidade. Atravessá-la era um exercício de paciência, pela muitas vezes que era abordado e as pessoas queriam saudá-lo e contar alguma coisa, quase sempre da família, pois ele se interessava pela vida familiar das pessoas que a ele se acercavam.

Já ouvi muitas vezes pregadores e leigos dizerem que viver a vida cristã é difícil, é um fardo, cheio de abnegações. Conviver com o Aziz era perceber que a vida cristã é uma alegria e felicidade para quem a vive na intensidade do amor ao próximo.

Ele era uma pessoa que irradiava alegria e felicidade. Ele “sorria com os olhos”.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

MIL E POUCO

Se não errei na conta, estou escrevendo a 1004ª. coluna para o Correio Popular. Já são quase 20 anos de escrita contínua, com um único período de férias, quando fui muito bem substituído pela Rute Salviano Almeida, pesquisadora e autora de vários livros sobre o papel da mulher na história da Igreja.

Comecei a escrever por indicação da jornalista Maria Tereza Costa. O meu compromisso era que não receberia nada em troca pelo meu trabalho semanal (nem mesmo uma assinatura do jornal!), para que eu pudesse ter liberdade. E assim está sendo até agora: nunca recebi um centavo e faço isto com dedicação e orgulho. Há quem me perguntou se era assalariado do PT, se era comissionado na Prefeitura, se ganhava do PSDB. Tais insinuações se deviam a mentes tacanhas que julgam que não posso ter opinião própria: tudo o que penso e escrevo deve ter um pagamento por trás.

Nesta relação tive muitos contatos com os editores para sentir como estava sendo recebida minha coluna, umas duas ou três vezes fui alertado de que o que eu escrevi poderia me trazer problemas judiciais e, em comum acordo, troquei a mensagem escrita, pois vi sabedoria no conselho que o redator me dava.

Umas poucas vezes falhei em escrever. Houve um tempo, logo no início que eu tinha que levar para a redação um disquete com o arquivo. Com o advento da internet as coisas foram facilitadas. Algumas vezes não consegui enviar o arquivo e isto se deveu a viagens. Onde estava não tinha internet para mandar o arquivo (isto ocorreu com mais frequência há vários anos, quando a internet era produto de luxo e não se achava em qualquer lugar). Em outras ocasiões eu ligava para a redação e pedia prazo estendido para enviar, porque, em viagem, só chegaria em casa depois das sete da noite. Sempre fui atendido com a gentileza das pessoas que me atendiam.

Já escrevi aqui que colunista não pode ter medo das críticas. É virar vidraça. Quando o colunista coloca em público e ao público as suas opiniões políticas e religiosas, fatalmente haverá quem discorde. Há os que discordam e o fazem saber em termos polidos. Há os que, discordando, julgam que atacar e ofender é o meio mais eficaz de ser ouvido.

Recebi muitos e-mails. Alguns concordando e muitos discordando. Entre os que discordavam, lembro-me de um que me escreveu uma série de e-mails. Ele lia e não entendia o que eu havia escrito, ou deduzia maniqueisticamente o que eu havia escrito. Quando critiquei o Bush pela guerra contra o Talibã, ele me chamou de comunista e terrorista, como se criticar a decisão do presidente me colocasse necessariamente como favorável à outra parte. A lógica dele era: se ele é contra A, só pode ser a favor de B. Silogismo falso.

Certa feita fiz um comentário en passant sobre o Foucault. Um leitor me escreveu criticando a citação e me enviou um compêndio, de sua lavra, com críticas ao filósofo. Por se tratar de um estudioso e mestrando na área eu o li e, diferentemente do que ele pretendia, eu fui ler mais coisas do Foucault e hoje sou um fã dele. Tenho pessoas que me enviam coisas que acham interessantes e que podem ser subsídio. A todos que me escrevem, eu respondo.

Desde o início assumi que escreveria sobre política internacional, nacional, local, sobre religião e igrejas. Assim tenho procurado fazer.

Das coisas que hoje faço, a que me tem dado mais alegria e satisfação é escrever esta coluna semanal. Em abril, na Semana Santa, completo 20 anos. Sinto-me realizado! À Tereza, os meus agradecimentos por ter me indicado.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

SENTADOR GERAL DA REPÚBLICA

O Brasil é um país capaz de produzir figuras públicas exóticas. O aparecimento do Odorico Paraguassú e sua cidade Sucupira são o exemplo de que, imitando situações reais e criando as hipotéticas, no Brasil se tem de tudo.

Nos tempos do Fernando Henrique Cardoso havia o Geraldo Brindeiro que foi galgado ao posto de Procurador Geral da República. De tão leniente em investigar as denúncias que à Procuradoria chegavam, ganhou o apelido de “Engavetador Geral da República”. Barrou uma investigação sobre o Dossiê Caribe (que depois, afirma ele, revelou-se uma farsa) e mais onze inquéritos contra Antonio Palocci que, depois, se revelou um sujeito com muitas revelações para dar na delação premiada.

Como a produção não para, tivemos nos últimos anos o “Sentador Geral da República”, o deputado Rodrigo Maia, agora ex-presidente da Câmara. Recebeu sessenta pedidos de impeachment contra o presidente e, ao que se sabe, não leu nenhum deles e nunca deu seguimento a eles. Tenho para comigo que uma pessoa que tem sessenta pedidos de impeachment, vindo das mais variadas fontes da sociedade, alguma coisa o presidente da Câmara deve fazer. No mínimo devia explicações das razões pelas quais ele sentou em cima dos processos.

O Maia, sujeito ensaboado, me faz lembrar da brincadeira nos sítios em tempos de Festa Junina, quando se ensebava um porco e as pessoas saiam correndo para pegá-lo. Assim é o Maia: liso até não mais poder. De tão político e muralista, perdeu a credibilidade e não conseguiu eleger o seu sucessor. Sai apequenado da presidência.

Também balança as alianças que estavam sendo costuradas para 2022, especialmente na aliança do Maia com o Doria, com o apoio dos Democratas. A coisa implodiu. O presidente da sigla, ACM Neto. decidiu, em cima da hora, deixar-se cooptar (há informações de que lhe ofereceram o Ministério da Educação que tem um ministro anódino, que já afirmou que está lá para ser pastor e não político). Com isto, a confirmar-se o que alguns deputados do DEM andam dizendo (palavra de político é como água de rio, cada vez que se olha é uma novidade), tem gente que vai bandear para o PSDB. Isto fortaleceria o Doria no partido e lhe daria algum alento, mas, se entendo das coisas, vai perder o tempo de televisão que o DEM tem para que possa alavancar a sua candidatura.

O ato de Maia de aprovar o bloco depois do horário regimental e que foi anulado pelo primeiro ato do novo presidente, mostra a dimensão da guerra que será o parlamento nos próximos dois anos, quando todos estarão concorrendo à reeleição. Mais que interesses da nação, aflorarão e prevalecerão os interesses pessoais. Será um tanto de gente fazendo discurso e disputando os holofotes que ficaremos enojados com a hipocrisia.

Quando o atual Congresso foi empossado e com a quantidade de novos legisladores de primeiro mandato, acreditou-se que haveria mudança nos hábitos parlamentares brasileiros. Passados dois anos, algumas estrelas da nova legislatura se apagaram, novos líderes foram removidos, a velha guarda entrou em ação, o Centrão se vendeu uma vez mais (ou voltou ao poder onde está há bom tempo).

Isto me faz lembrar de um consultor que li em livro que escreveu. Ele afirma que a mudança de cultura, seja em empresa, instituição, igreja ou, aqui no caso, parlamento, não se faz por passe de mágica, nem com pó de pirlimpimpim. Toma tempo e muito compromisso com uma nova ordem de coisas. Os antigos caciques se apagaram (Jader Barbalho, Renan Calheiro, Paulo Maluf, Sarney, José Serra e muitos outros). Nem por isto o fisiologismo deixou de ter seu espaço e o Sentador Geral da República é um sucedâneo da velha política, com cara de novo. Só a pressão popular pode fazer mudar.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

ILOGICIDADES DA FÉ

O casal, ambos com pouco mais de 70 anos, foi infectado com o Sarscov-2. Os filhos levaram o casal ao Pronto Socorro, o casal foi medicado e voltou para casa. No outro dia voltaram, marido e esposa foram internados.
Como eram inscritos em alguns grupos de WhatsApp onde compartilhavam coisas relacionadas à fé (tais como memes de versículos bíblicos, mensagens de pregadores famosos, música gospel), uma das filhas avisou nos grupos que a mãe e o pai foram hospitalizados. A coisa começou a ferver com gente dizendo estar orando. Começaram a chover jargões religiosos de cunho motivacional: “Deus está no controle”, “mesmo no vale da morte Ele está conosco”, “tudo podemos em Deus”, “praga nenhuma alcança quem tem fé”, “tudo o que dois ou três concordarem em pedir em Meu Nome, será concedido”, e uma infinidade de outras frases de mesmo sentido: “quem crê tá livre do mal.”
Diariamente, a filha municiava os grupos com informações sobre a saúde dos pais. Repetiam-se os ícones de mão juntas (em sinal de oração), carinhas tristes e outras mais. Os jargões se repetiam.
O quadro de saúde de ambos se deteriorou e a mãe veio a óbito. Nos grupos de WhatsApp proliferaram as mensagens de luto, todas clássicas: “Deus a chamou”, “agora ela está melhor que nós”, “Ela era um anjo aqui na terra e Deus a chamou ao Seu lado”, etc. Nenhuma palavra sobre o fato de que as muitas orações não tenham sido respondidas, nem sobre a falácia dos jargões motivacionais.
O pai continuava internado, UTI, prona, intubação, sedação. A cada dia, a filha postava notícias sobre ele. Os jargões se repetiam. Parece que ninguém se dava conta de que eles não funcionaram com a mãe.
Uns dez dias depois, o pai apresentou quadro de leve melhora e saiu da UTI. Houve celebração: “Deus ouviu nossas preces” era o mais comum. “Vamos orar forte pela saúde dele que Deus vai nos dar a vitória”. No dia ele teve alta, houve uma explosão de “Glórias”, “Aleluias”, “louvado seja Deus”, “nossas orações foram ouvidas” e coisas parecidas.
Uma das participantes escreveu algo mais ou menos assim: “O Fulano é um guerreiro, Deus deu a ele a vitória sobre esta enfermidade. Nós oramos juntos em uma batalha de oração, vencemos e agora celebramos a vitória da fé”.
Ninguém se perguntou: se ele é um guerreiro porque teve alta hospitalar, significa que a esposa era fraca? A fé do marido é maior que a da esposa, por isto ele foi curado e ela morreu? As orações feitas pelo marido foram mais fortes que as que foram feitas pela esposa? Em que medida a oração muda os planos de Deus para a vida de uma pessoa? O pai era mais importante para a saúde emocional dos filhos que a presença da mãe?
Perguntar não é pecado. Se analiso as atitudes da fé neste caso específico não sou herege. Não tenho resposta para as questões que eu mesmo levanto, mas de uma coisa sei: há uma fé enfermiça nos arraiais da religiosidade. Também não quero dizer que a fé mais racional seja mais fé que outra. Entendo e aceito que a fé tem forte componente emocional e certo nível de crença no impossível, o que, pode ser, em alguns casos, sinal de certa irracionalidade. O que critico é a banalização da fé via jargões motivacionais sem sentido, sem prática comprovada e sem análise avaliativa das vezes em que foi empregado e o resultado que produziu.
Como pastor que lida com expressões de fé cotidianamente, muitas vezes me perguntei em que falhava ao ver que muitas das minhas ovelhas eram verdadeiros bonsais: ficam velhas e não cresciam. Pareciam maduras, mas era ingênuas e infantis. Tenho para comigo que o método educacional mais usado nas igrejas, notadamente as denominadas evangélicas, é o da pregação. Pesquisas por mim feitas e por alguns de meus colegas, constatam que a maioria não se lembra na segundo qual foi o sermão do domingo.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

HE IS A LOOSER

Quando morei em Chicago, ouvi a expressão algumas vezes. Sempre a tomei como adjetivo inofensivo. Estranhava a facilidade com que se dizia que o outro era um “idiot”. Isto, para mim, era pegar pesado.

Com o tempo percebi que o termo “idiot” não tem o mesmo peso e negatividade que tem no português. Da mesma forma a palavra “estupid”. Virou famosa a frase de James Carville em 1992, dirigida aos trabalhadores da campanha de Clinton.

Um dia, conversando com um executivo eu o ouvi, irado, chamar de looser a pessoa que ele estava detonando. Meio embasbacado com a expressão, pedi a ele que a refraseasse, para que eu a entendesse melhor e ele me disse: não há outra melhor “looser, looser, looser.”, reiterou enfaticamente.

Percebi que não tinha entendido o peso da expressão. Ao invés de pegar o sentido no original, estava traduzindo. Mais tarde vi duas pessoas discutindo. Quando uma delas se referiu à outra como looser, a ofendida partiu para as vias de fato.

Nestes dias ouvi a expressão aplicada ao Trump: ele perdeu a eleição, todas as ações judiciais que impetrou, o apoio de parte do seu partido, a presidência, a pose, o discurso, o Facebook, o Instagram, Twitter, o Parler, a votação do segundo impeachment, vai perder no Congresso, perdeu a casa onde morava porque despejado pelo voto, vai perder os holofotes e terá que enfrentar a enxurrada de ações, algumas criminais

Ele é um looser.

Sem dar o mesmo peso que a palavra tem no inglês, acho que a nosso Trump tupiniquim também é um colecionador de derrotas. Disse que montaria um ministério de notáveis e perdeu as estrelas da Justiça (Moro), da Saúde (Mandetta) e a outra (Guedes) até agora não mostrou a que veio. Se notáveis são o das Relações Exteriores, do Meio Ambiente, os três da Educação, o atual da Saúde, que me perdoe o idioma, não sei o que é notável. Só se ela se refere à notabilidade pelos desatinos que cometem.

Elencar as perdas sofridas no embate com o STF é fazer lista parecida à do supermercado, pela quantidade de itens. A investigação sobre a interferência na PF, a não nomeação do Ramagem, o depoimento oral no caso da PF, e por aí vai. Perdeu ao querer a possibilidade de reeleição do Alcolumbre. Viu seus apoiadores serem investigados e com as contas escrutinadas (Luciano Hang é um exemplo), a investigação do Gabinete do ódio está batendo à porta. Alguns bolsonaristas ativistas virtuais foram presos, o Godoy também, o Wassef está enrolado, o filho não explica as rachadinhas e ele não tem explicação para os depósitos na conta de esposa.

Na política, perdeu o apoio do Maia, não foi o responsável pela Reforma da Previdência, não conseguiu emplacar o Major Hugo como líder na Câmara, está tendo problemas para emplacar seu candidato à presidência da Câmara. Diante de tantas perdas teve que mudar o discurso, se aliar ao Centrão e fazer o fisiologismo que tanto atacou.

No caso das vacinas, perdeu todas. E quem vai salvar a lavoura será a vacina chinesa do Dória que ele execrou e disse que nunca a compraria. É a China, malhada por alguns ministros e pelos filhos, quem veio dar um oxigênio a um governo destrambelhado. Aquilo que era “vacina chinesa do Dória” agora “é vacina do Brasil e não de algum governador”. Uma coisa ele tem: muda de posição a cada troca de cueca, no que é imitado pelo Ministro da Saúde.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

EU SOU A VERDADE

Tanto quanto eu, a julgar pelas mensagens e e-mails que recebo, tem muito mais gente intoxicada com os “donos da verdade”. Este sentimento foi fertilizado pela reação do Donald Trump ao insucesso e derrota que sofreu. Na sua visão, no que pese todos quantos o aconselharam, o que é verdade é o que ele acredita.

A ele se aplica o ditado atribuído a Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler: “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”. De tanto repetir que a eleição foi fraudulenta e que a vitória lhe foi roubada, isto passou a ser verdade. O que estranha é que uns 20% acreditam piamente no que ele diz. O problema é que esta estratégia foi anunciada com antecedência, tentou-se provar a veracidade dela com factoides e insinuações de que mortos votaram, teve mais votos que eleitores, que os votos por correio eram uma forma de fraudar etc. Votos foram recontados, a justiça escrutinou tudo e sentenciou: não houve fraude!

Não foi o suficiente. Ele insuflou a horda que acredita em teorias da conspiração para invadir o Capitólio e tentar um golpe de Estado. Não deu certo. Ainda vai tentar alguma loucura, porque continuar acreditando em fraudes, depois de tudo o que se fez em averiguação, só pode ser loucura.

Ontem me mandaram um áudio de uma mulher não identificada, que teria ido a uma ginecologista não identificada, que lhe teria dito que a Coronavac tem elementos que permitem rastrear as pessoas e que isto vai habilitar a Inteligência Artificial a nos manipular. Para desatino maior, informa que quem patrocina isto é o Bill Gates. Quem enviou a mensagem dizia que por isto não tomaria a vacina. Perguntei à pessoa por que não usavam o paracetamol, a dipirona, que todo mundo toma como analgésico, para infiltrar o tal rastreador que permite a manipulação. Estou aguardando resposta.

Tenho chegado à conclusão de que é mais fácil lidar com o diferente do que com o ignorante. Contra a ignorância perde-se tempo usando argumentos. Como disse uma pessoa acerca de seu pai: “ele só ouve quem diz sim a tudo o que ele fala”.

Um dos líderes da invasão do Capitólio é Jake Angeli, também conhecido como Q-Shaman, ativista do grupo que divulga teorias conspiratórias, entre eles o QAnon. Este grupo dissemina e acredita que o Trump está salvando o mundo de uma rede internacional de pedofilia e um dos manifestantes no topo da escada do Capitólio empunhava um cartaz que afirmava que o Biden é pedófilo. A imprensa séria americana tem chamado a estes manifestantes de milicianos e terroristas domésticos.

Como brasileiros, não estamos livres desta praga. Tem gente disposta a ficar retuitando e disseminado estas teorias sem-pé-nem-cabeça, especialmente contra as vacinas para a Covid, mas nada falam dos feminicídios, das rachadinhas, não explicam cheques depositados na conta de esposa, afirmam ter havido fraude nas eleições com voto eletrônico, sem apresentar provas e documentos. Só ouvem o que querem ouvir.

Vivemos tempos de colher os frutos de uma educação onde precisava só preencher quadrinhos com um X, em múltipla escolha. Contrariando a premissa de que a explicação mais simples tem maior probabilidade de ser a correta, preferem optar pela mais extensa, porque lhes parece que a verdade é feita de muitos argumentos, mesmo que desconexos ou ilógicos.

Marcos Inhauser