O casal, ambos com pouco mais de 70 anos, foi infectado com o Sarscov-2. Os filhos levaram o casal ao Pronto Socorro, o casal foi medicado e voltou para casa. No outro dia voltaram, marido e esposa foram internados.
Como eram inscritos em alguns grupos de WhatsApp onde compartilhavam coisas relacionadas à fé (tais como memes de versículos bíblicos, mensagens de pregadores famosos, música gospel), uma das filhas avisou nos grupos que a mãe e o pai foram hospitalizados. A coisa começou a ferver com gente dizendo estar orando. Começaram a chover jargões religiosos de cunho motivacional: “Deus está no controle”, “mesmo no vale da morte Ele está conosco”, “tudo podemos em Deus”, “praga nenhuma alcança quem tem fé”, “tudo o que dois ou três concordarem em pedir em Meu Nome, será concedido”, e uma infinidade de outras frases de mesmo sentido: “quem crê tá livre do mal.”
Diariamente, a filha municiava os grupos com informações sobre a saúde dos pais. Repetiam-se os ícones de mão juntas (em sinal de oração), carinhas tristes e outras mais. Os jargões se repetiam.
O quadro de saúde de ambos se deteriorou e a mãe veio a óbito. Nos grupos de WhatsApp proliferaram as mensagens de luto, todas clássicas: “Deus a chamou”, “agora ela está melhor que nós”, “Ela era um anjo aqui na terra e Deus a chamou ao Seu lado”, etc. Nenhuma palavra sobre o fato de que as muitas orações não tenham sido respondidas, nem sobre a falácia dos jargões motivacionais.
O pai continuava internado, UTI, prona, intubação, sedação. A cada dia, a filha postava notícias sobre ele. Os jargões se repetiam. Parece que ninguém se dava conta de que eles não funcionaram com a mãe.
Uns dez dias depois, o pai apresentou quadro de leve melhora e saiu da UTI. Houve celebração: “Deus ouviu nossas preces” era o mais comum. “Vamos orar forte pela saúde dele que Deus vai nos dar a vitória”. No dia ele teve alta, houve uma explosão de “Glórias”, “Aleluias”, “louvado seja Deus”, “nossas orações foram ouvidas” e coisas parecidas.
Uma das participantes escreveu algo mais ou menos assim: “O Fulano é um guerreiro, Deus deu a ele a vitória sobre esta enfermidade. Nós oramos juntos em uma batalha de oração, vencemos e agora celebramos a vitória da fé”.
Ninguém se perguntou: se ele é um guerreiro porque teve alta hospitalar, significa que a esposa era fraca? A fé do marido é maior que a da esposa, por isto ele foi curado e ela morreu? As orações feitas pelo marido foram mais fortes que as que foram feitas pela esposa? Em que medida a oração muda os planos de Deus para a vida de uma pessoa? O pai era mais importante para a saúde emocional dos filhos que a presença da mãe?
Perguntar não é pecado. Se analiso as atitudes da fé neste caso específico não sou herege. Não tenho resposta para as questões que eu mesmo levanto, mas de uma coisa sei: há uma fé enfermiça nos arraiais da religiosidade. Também não quero dizer que a fé mais racional seja mais fé que outra. Entendo e aceito que a fé tem forte componente emocional e certo nível de crença no impossível, o que, pode ser, em alguns casos, sinal de certa irracionalidade. O que critico é a banalização da fé via jargões motivacionais sem sentido, sem prática comprovada e sem análise avaliativa das vezes em que foi empregado e o resultado que produziu.
Como pastor que lida com expressões de fé cotidianamente, muitas vezes me perguntei em que falhava ao ver que muitas das minhas ovelhas eram verdadeiros bonsais: ficam velhas e não cresciam. Pareciam maduras, mas era ingênuas e infantis. Tenho para comigo que o método educacional mais usado nas igrejas, notadamente as denominadas evangélicas, é o da pregação. Pesquisas por mim feitas e por alguns de meus colegas, constatam que a maioria não se lembra na segundo qual foi o sermão do domingo.
Marcos Inhauser
Professor, pastor, teólogo e educador corporativo Textos escritos para a coluna semanal no Correio Popular, da cidade de Campinas e texto escritos depois de 2021, que tratam de temas nacionais, internacionais, sobre igreja e teologia
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quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
terça-feira, 16 de outubro de 2012
NÃO ME DEIXE CANSAR
Estávamos reunidos em culto na casa de uma pessoa. O
ambiente era pesado porque a filha do casal que nos recebia estava na UTI do
hospital. Usuária de drogas, ela havia se entregado há alguns anos a todas elas,
mais álcool.
Muitas vezes vimos a mãe chorando, pedindo que orássemos
pela filha, que ela fosse liberta das drogas, mas parece que nada resolvia. A
cada dia ela ia se definhando e com ela definhava a mãe a o pai.
Naquela semana a situação chegou ao limite extremo. A filha
estava morrendo. E nesta situação estávamos ali em culto e oração. Tínhamos a notícia
de que a moça estava com falência dos dois rins e que passaria por hemodiálise,
mas sem garantia de ela pudesse sobreviver.
A mãe, quieta e chorosa, estava arrasada. Tomei a coragem de
perguntar a ela como se sentia e como havia aguentado tanto tempo a situação de
ter uma filha que desaparecia e que quando voltava, era um trapo de gente.
Ela, de forma calma, disse mais ou menos o seguinte: “Nestes
anos todos eu só tinha uma oração que eu fazia e faço. Pedia a Deus que não deixasse
eu me cansar da minha filha. Ela aparecia a qualquer hora do dia ou da noite,
sob chuva ou sol, sempre baleada pelas drogas. Eu a recebia, cuidava e amava.
Ouvia as promessas que ela me fazia e me perguntava se dava para acreditar.
Logo depois ela ia outra vez para a rua e voltava só Deus sabe quando. Eu
ficava orando e pedindo a Deus que eu não me cansasse da minha filha. Eu hoje
peço a Deus que a livre desta situação. Se ela sair desta e precisar fazer
hemodiálise para sempre, e se meu rim for compatível, vou doar um rim para ela.”
Eu não acreditava no que estava ouvindo. Uma mãe disposta a
dar parte de si para uma filha que jogou a sua vida fora, que estava nas
últimas pelas lambanças que fez e uma mãe pedindo que ela vivesse e que seu rim
fosse compatível para poder doar a ela.
Um misto de irritação, desconforto e incredulidade caíram sobre
mim.
Oramos pela moça, mas eu não acreditava que ela pudesse
escapar. Terminado o culto fui para casa e não conseguia dormir, pensando
naquela oração e na disposição de doação. Foi quando um pensamento me veio
forte (os mais espiritualizados diriam que Deus me falou): era a demonstração concreta
da graça divina através de uma mãe para com uma filha que não merecia nada,
depois de tudo o que havia feito.
Hoje eu faço a mesma oração. Há algumas pessoas que estou
pedindo a Deus que eu não me canse delas, no que pesem o fato de serem
murmuradoras, pessimistas, se passarem por vítimas, fazerem de uma vírgula uma
novela, carentes afetivos. Pessoas que cansam, folgadas, espaçosas, que não dão
o direito ao outro de falar, mas falam pelos cotovelos, interrompem, inconvenientes,
repetitivas, egoístas.
Tomei a oração desta mãe como lema: Deus, não me deixe
cansar destas pessoas doentes.
Marcos Inhauser
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quinta-feira, 12 de abril de 2012
MEU TEMPLO É A COZINHA
Meu altar é o fogão.
Minha ceia é o arroz e feijão,
salada e mistura.
A mesa é a celebração da
comunhão.
Os vapores das panelas são o
incenso das minhas orações.
O cheiro é a antecipação do
paraíso.
A reunião é a adoração.
O barulho dos comensais é o canto
de louvor.
Não falo em metáforas, mas na
concretude dos fatos de entender que cada refeição é uma Eucaristia. Cada vez
que entro na cozinha eu o faço com reverência. Gosto de cozinhar e entendo que
fazê-lo é um ato de amor ao próximo. Cozinho não para mim, mas para os meus
familiares, os meus amigos. Esmero-me.
Cortar uma cebola ou um tomate é
um ato de celebrar ao Criador ao ver as texturas, a disposição das sementes, o
cheiro, o gosto. Colher a salsa e a cebolinha é um ato de usufruir do criado e
o prazer do sabor na comida. Mesmo folhas minúsculas, moídas, picadas, esmagadas,
trazem tempero e a delícia da criação ao prato preparado. Temperar uma carne,
um peixe, um frango é um ato de adoração ao Criador que nos deu a comida e a
sabedoria em prepará-las. Que mundo mais
sem graça seria se tudo viesse pronto, como fast food divino. Ele deixou a nós
a liberdade para temperar, acrescentar sabores, mudar formas, variar arranjos.
A cozinha requer uma estola
sacerdotal. O avental é a estola do sacerdote cozinheiro. E cozinheiro que se
preze tem seus instrumentos próprios: tem suas facas, sua chaira, sua pedra de
afiar, a colher de mexer. Não é qualquer faca, nem qualquer colher. Há hora certa
de entrar em cena. Dependendo do que se vai cortar ou mexer, lá vai o
instrumento certo. Há uma liturgia no ato de cozinhar.
Cada vez que preparo uma comida
posso dizer com toda propriedade e sem nenhuma blasfêmia que “isto é meu corpo
dado por vós”, “isto é meu sangue dado por vós”. Quem nunca saiu de uma cozinha
exausto e moído de canseira? Quem nunca cortou o dedo preparando a comida? Mais
que isto, posso dizer que é meu corpo e meu sangue porque o alimento ali
apresentado teve horas de trabalho, de vida consumida para trazê-lo e coloca-lo
à mesa. E cada vez que apresento o alimento na mesa da comunhão, propicio o
milagre da ressurreição: corpos famintos, esmaecidos pela canseira, tem seu
vigor renovado, sua vida ressuscitada.
Sentar-se à mesa tem um quê de
sacramental. As inimizades não resistem a uma comida fraternal, a unidade é
fortalecida pelo fato de compartilhar da comida. A solidariedade é enriquecida
por ter que desfrutar da comida pensando que o outro também deve comer. Há o
milagre da multiplicação: quantas vezes você serviu uma janta ou almoço e achou
que a comida era pouca? E quantas vezes, apesar disto, sobrou um pouco no fundo
da panela?
Cada vez que juntos comemos,
esperamos a oportunidade de um novo comer, uma nova reunião, uma nova
Eucaristia. Cada almoço e jantar deve ser uma Eucaristia celebrada na
intimidade do lar, no convívio dos queridos e no convite dos que queremos nos
reconciliar.
Marcos Inhauser
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