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quarta-feira, 19 de maio de 2021

DEFENDEM O VELHO USANDO O NOVO

Na teologia há uma tensão entre fundamentalistas e liberais. Os primeiros acusam os segundos de ceder ao mundo e à cultura e de implantar na igreja, liturgias e cultos as “coisas do mundo”. Adoram citar o texto “as portas do inferno não prevalecerão contra ela (igreja).”

Em leitura simplista e enviesada, fazem a dicotomia maniqueísta entre secular e espiritual, mundo e reino, igreja e sociedade. Esquecem-se de que a igreja está no mundo, é feita por quem vive no mundo, é moldada pela cultura “mundana” onde vive, que há aspectos culturais próprios de cada país e região, que as coisas do mundo nem sempre são más ou pecaminosas.

Estes intérpretes não percebem as conotações que a palavra “mundo” tem na Bíblia e nas falas de Jesus. Misturam alhos com bugalhos. Fundamentalistas e, por conseguinte, literalistas, creem na infalibilidade das Escrituras que, na verdade é a infalibilidade de suas próprias opiniões pretensamente bíblicas. Usando um conceito que só apareceu na história da Igreja com os pietistas no século XVII, afirmam algo que a Igreja histórica nunca afirmou. Chegam a sustentar a infalibilidade inclusive das vogais (os textos hebraicos só usavam as consoantes e a vocalização apareceu no século VII com o trabalho dos massoretas). Creem, contra toda a evidência e lógica interna dos escritos, na inspiração verbal e plenária e na inspiração mecânica, onde o próprio Deus ditou as palavras da Bíblia. Até os relatos em que se atribui a fala a Satanás, Deus foi o inspirador.

Agarram-se ao novo para defender o velho. As perguntas mais pertinentes ao texto bíblico, a discrepância entre dois relatos (números no censo, palavras dos dois crucificados com Jesus, as duas narrativas da criação, duas do dilúvio, entre outras) são coisas de herege. Tive um aluno tão ferrenho na defesa da autoria mosaica do Pentateuco, que escreveu um TCC com o título “Direitos Autorais de Moisés sobre o Pentateuco”. Ele afirmava que Moisés escreveu até o relato de sua morte, porque Deus havia revelado a ele por antecipação!

Condenam o uso de música popular nas igrejas, mas ficam extasiados ao cantar o hino nacional da Inglaterra ou da Alemanha com letra religiosa. Dão um tempero religioso às músicas country dos EUA, mas proíbem os ritmos nacionais.

Afirmam a família monogâmica como plano de Deus, mas se esquecem que a poligamia era a norma no Antigo Testamento. Só no Concílio de Latrão, em 1215, a igreja elaborou a legislação do matrimônio. O sacramento apareceu em 1439, no Concílio de Florença.

Desde o século VIII a igreja defendeu a monogamia. Os reis francos eram polígamos e isto exibia a riqueza, poder e alianças políticas. Um deles teve seis esposas! Isto interferia em questões dinásticas. A reforma gregoriana no século XI definiu que clérigos deviam ser celibatários e os casados monogâmicos. Nunca foram fiéis às exigências da Igreja. Concubinas e amantes resistiram. Com o tempo a poligamia se enfraqueceu.

Usam o modelo de famílias pequenas (de dois filhos) e defendem que os filhos são benção do Senhor e quanto mais se tem, mais abençoado é: era mão de obra para os campos e guerreiros para defender a terra. Exigem o casamento no civil para oficiar o religioso, mas se esquecem que isto só surgiu no século XIX. Antes era um acordo comercial entre famílias. Exige-se amor para o casamento, coisa que só apareceu depois do século XVI.

É muito barulho prá minha cabeça!

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 12 de maio de 2021

O TRÔPEGO E O EQUILIBRISTA



Tenho meu lado masoquista. Já tentei por três vezes ler o Ulisses de James Joyce, algumas vezes o Capital de Marx, Crítica da Razão Pura do Kant e algumas obras de Hegel, e a mais hermética delas, O Espírito da Lógica. Desastre anunciado. De cada frase lida entendia um terço, se é que entendia. Há outras que nunca consegui ler, por pura assintonia com o tema e seu desenvolvimento: Pequeno Príncipe e Meu Pé de Laranja Lima.

Já tive outros surtos em noites de insônia: escutar sermões de pregadores da prosperidade na madrugada. Nada se compara às intermináveis alocuções de ministros do STF em seus votos, que já ouvi por horas a fio.

Dito isto, afirmo que assisti a todo o depoimento do ministro Quiroga à CPI da Pandemia. Dos outros dois anteriores vi partes, pois presumia que já sabia o que diriam e que nada muito bombástico sairia, mas que não se furtariam a tisnar a reputação do “impoluto”. No caso do Quiroga, dada as circunstâncias de sua nomeação, logo após a recusa de uma médica por perceber que não teria autonomia (e isto ela afirmou ao explicar a recusa ao convite), me dava certo interesse. E lá fui eu exercer este meu lado de sofrimento.

À medida que ouvia as perguntas e lia a expressão corporal do questionado, percebia o extremo desconforto do ministro. Mesmo nas perguntas e/ou “defesas”, o seu corporal mostrava a sua incômoda situação. À medida que a inquirição avançava, uma coisa acontecia comigo: não saía da minha cabeça a música do João Bosco, eternizada pela Elis Regina, O Bêbado e o Equilibrista. Diante das perguntas que se referiam às trôpegas ações do Ministério da Saúde, o equilibrista tentava se manter em pé, sem derrubar ninguém e esforçando-se para não cair ou ser caído.

Com o DNA de quiabo, escorregava. Tal como porco ensebado em festa caipira de São João, ele escapava das tentativas de ser agarrado. Até broncas públicas ele levou por sua técnica evasiva de responder sem se comprometer. Ele sabia que, se não mantivesse a postura de se equilibrar na corda bamba, derrubaria o trôpego. Efeito dominó: se ele cai, leva mais gente junto. Também zelava seu currículo para ser tão breve quanto foi o Teich.

A música estava cada vez mais forte e comecei a ter vontade de cantá-la, especialmente alguns versos: “Caía a tarde feito um viaduto / E um bêbado trajando luto / Me lembrou Carlitos / A lua tal qual a dona do bordel / Pedia a cada estrela fria / Um brilho de aluguel / E nuvens lá no mata-borrão do céu / Chupavam manchas torturadas / Que sufoco! / Louco, o bêbado com chapéu coco / Fazia irreverências mil / Pra noite do Brasil, meu Brasil / Que sonha com a volta do irmão do Henfil / Com tanta gente que partiu / Num rabo de foguete / Chora a nossa pátria, mãe gentil / Choram Marias e Clarisses / No solo do Brasil / Mas sei que uma dor assim pungente / Não há de ser inutilmente / A esperança dança / Na corda bamba de sombrinha / E em cada passo dessa linha / Pode se machucar / Azar, a esperança equilibrista / Sabe que o show de todo artista / Tem que continuar.

Confesso que, na minha versão cantada, troquei umas poucas palavras para ser mais atual, ainda que nem sempre obedeci a métrica e as tônicas. E eu cantando a minha versão fui mais desafinado que o depoimento do ministro.

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 5 de maio de 2021

QUANDO É O FUTURO?

Nunca fui de ler romances ou contos. Li vários, mas sempre gostei mais de livros mais conceituais. Ainda no início da adolescência li, de Stefan Zweig, “Brasil, o país do futuro”. Fiquei encantado e o sonho do futuro embalou muita coisa na adolescência e juventude. Acreditava piamente que o Brasil era o país do futuro. Empolguei-me com o Juscelino e a construção de Brasília e pensava: “agora vai!”

A cada pouco ouvia algum político de renome repetir a frase ou a ideia e isto mexia com meus brios. Acreditei no Jânio Quadros com seu símbolo da vassourinha e o jingle “varre, varre vassourinha”. Era, para mim o futuro chegando. Estive, criança ainda, em um palanque em que ele discursava e tenho uma foto ao lado dele, em cima da carroceria de um caminhão.

No final de 1965 fui morar em El Salvador e me lembro de quantas vezes tive conversas e discussões acaloradas, dizendo aos colegas de escola que o Brasil era a potência dos anos 2000. Veio a ditadura. Tios e primos apoiavam os militares e eu ficava meio perdido. Lia dois jornais por dia, estudava em colégio com alguns críticos, lia o Pasquim assim que saía. Conseguia comprar escondido porque as bancas que o vendiam eram incendiadas. Acompanhei pari passu os eventos do Restaurante Calabouço, a morte do estudante, a revolução da UNE contra o acordo MEC-USAID. Achava que Guilherme Palmeira estava liderando a marcha para o futuro. Voltei de El Salvador no final de 1966 e vibrei com os festivais de música e meu hino passou a ser a canção de Vandré: “quem sabe faz a hora, não espera acontecer”.

A ditadura demorava para acabar. Ficava sabendo dos horrores nos porões do DOI-CODI e tive um amigo preso que nunca mais soube dele. Parece que o combustível do sonho que havia em mim estava acabando. Entre o Brasil do futuro e o Brasil da realidade, a energia foi sendo exaurida. Comecei a ficar cético e algumas vezes irritado quando alguém afirmava Brasil-potência, país do futuro, o Brasil tem tudo para dar certo. Uma frase começou a aparecer na minha mente cada vez que ouvia isto: “ou acabamos com a saúva, ou a saúva acaba com o Brasil”. Ela estava em um pacote de veneno. Eu sabia onde estavam as saúvas, mas faltava o veneno.

Tive um lampejo de ânimo quando soltaram o plano Cruzado. Ingenuidade. A saúva acabou com a proposta. Não conseguia acreditar no Sarney (e ainda não consigo, pois o acho a saúva mor). O que veio depois foi acentuando minha desilusão quanto ao futuro. Comecei a questionar o sistema partidário, as eleições via marketing, o sistema bicameral, a capacidade de eleger gente nova para o sauveiro central. A cada dia que ouço os jornais, tanto no radio como na TV, que leio o jornalismo de opinião, que recebo as mensagens, as mais variadas, nos grupos de WhatsApp, mais me desencanto com o país do futuro.

A cada reunião do STF tomo uma injeção de depressão. Um desfile de narcisos que não me convencem da imparcialidade e impessoalidade que devem nortear seus julgamentos. Quando ouço o Lira ou o Pacheco, a vela com luz tênue leva um sopro e apaga. Nunca me lembro de ter ouvido tanta babaquice de expoentes da política nacional. Parece que recebem mídia training para falar non senses. Agora de manhã ouvi a entrevista do Ciro Nogueira acusando o Mandetta de ser show man e defendendo o Pazuello.

A pergunta vem forte à mente: quando é o futuro? Eu o espero há 60 anos e nada dele. Seria algo parecido ao romance “Esperando Godot”?

Ele azedou o meu dia!

Marcos Inhauser