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quarta-feira, 30 de setembro de 2020

PÁTRIA EM PRANTOS

Não chegamos às 150.000 mortes, mas estamos perto dele. Chegar aos 200.00 é uma questão de tempo. No mundo, na segunda-feira, se chegou a um milhão de mortes pela Covid-19!

O número de Dunbar é o limite no número de pessoas com as quais alguém mantém relações sociais estáveis, afetivas e conhece dados pessoais significativos. É o número no qual cada pessoa conhece cada membro do grupo e sabe identificar a relação dele com as outras pessoas do grupo. Este número foi estabelecido por pesquisa e referendado por outras e citado em inúmeros trabalhos acadêmicos, especialmente no campo da antropologia. Proposto por Robin Dunbar, esse número teórico varia entre 100 e 230 pessoas. Vamos tomar a média entre o mínimo e o máximo e trabalhar com 165 pessoas com as quais cada um de nós conhece, se relaciona e sabe quem é, o que faz, tem algum sentimento em relação a ela e que a falta dela, por ausência ou morte afeta significativamente a vida das demais pessoas.

Tomando as 150.00 pessoas que morreram, vezes as 165 pessoas que, em média, sentem a falta delas, teremos, no Brasil, 2.4750.000 chorando a morte de alguém e 165.000.000 em prantos no mundo. Ocorre que, há casos da morte de pessoas que não conhecíamos e soubemos das características delas em vida ou como foi a enfermidade, ou as pessoas que deixaram e nos solidarizamos e, não poucas vezes, choramos pelo desconhecido.

Ocorre que, com a seca, as queimadas e a quantidade de animais que foram dizimados ou feridos com as queimaduras, todos choramos pelo desastre ambiental, aumentando o manancial de lágrimas da pátria. Não só choramos as mortes humanas, mas também a morte de parte da Amazônia, do Pantanal e de outros biomas vitimados por incêndios, quase todos criminosos.

Sabe-se que há certo nível de sensibilidade nas plantas, que elas podem retribuir o cuidado, como podem se ressentir com os maus tratos. Se há, como pesquisas têm evidenciado, certo sentimento nas plantas, acredito que posso afirmar o sofrimento das árvores cortadas, queimadas, de toda a vegetação dizimada pelo fogo. Posso falar do sentimento dos animais em pânico com a tragédia que se avizinhava, posso chorar a morte das onças pintadas, capivaras, porcos do mato, jacarés, etc.

De minha parte, chorei nesta segunda-feira com a sentença de morte de outros ecossistemas decretado pela resolução trágica e insustentável do Conama, apoiada pela CNA e CNI, capitaneada por um facínora ambiental.

A dor de algo inevitável é menor que a dor de algo que se perde e se podia evitar. Ver mesmo que seja a mãe ou pai morrer depois de longo período de enfermidade, pode até ser reconfortante, ainda que choremos a perda. Mas chorar a perda quando ela poderia ter sido evitada é muito, mas muito mais dolorido. Quantas lágrimas rolaram nas faces de quem teve um filho, pai, mãe, esposo ou esposa perdidos pela falta de leitos, respiradores, remédios? Morte evitáveis, mas que foram assassinados pela incompetência, incúria e imperícia. Quantos amantes da natureza não choraram ao ver e saber do que acontecia nos ecossistemas devastados pelo fogo?

Somos uma pátria em prantos. A seca não se combate com as águas das nossas lágrimas, mas elas podem regar novos tempos, novas realidades. As lágrimas doloridas e amargas das perdas pessoais e da natureza podem fazer crescer o rio para arrastar para longe o antiministro, para quem o meio ambiente é “só meio ambiente” ou “ambiente pelo meio”.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 23 de setembro de 2020

INFERNOS URBANOS

Não se sabe ao certo quando a ideia do inferno foi associada ao fogo. Quando visitei Jerusalém juntamente com outros 16 diretores de Seminários Menonitas e assessorados por uma arqueóloga, ouvi uma explicação bastante interessante. Há dois vales ao lado de cidade: Hinon, um vale onde se depositava o lixo e Cedron, um vale limpo, que não recebia lixo para que não contaminasse a fonte de água da cidade (Fonte de Gion).

O vale de Hinon, por receber lixo, este se decompunha e produzia enxofre e por causa do metano, queimava diuturnamente. Criou-se a ideia de que para o lixo e para ao fogo eterno seriam mandadas as pessoas indesejáveis socialmente. Na versão dos Setenta (Septuaginta) o Vale de Hino foi traduzido como Geena.

Ocorre que, me parece, os infernos não são exclusivamente de fogo. A vida urbana tem criado outros infernos tão suplicantes quanto ficar queimando eternamente. Vi uma reportagem sobre um determinado bairro em São Paulo, mais para favela que para bairro, onde o dono de um bar promove bailes funks que começam na sexta à noite e terminam no domingo à tarde. Música em volume insuportável para quem do baile não participa, barulho da multidão gritando e cantando, bebidas, drogas e total falta de respeito aos moradores. Um inferno todo final de semana!

Uma amiga me contou na semana passada que teve que se mudar do apartamento onde morava por causa do barulho das motos que a infernizava. Ela morava em um apartamento perto do Mario Gatti e afirma que as motos dos entregadores parece que faziam questão de fazer barulho ao deixar os prédios onde vinham entregar comida.

Se me lembro bem, há uma lei que pede que não se buzine nas redondezas dos hospitais. O escapamento e a aceleração desnecessária podem? Onde a fiscalização? Se houvesse da parte da EMDEC a mesma competência para fiscalizar que tem para aplicar multas, a coisa seria diferente!

As motos já são, de fábrica, barulhentas. Já não bastasse o barulho “normal”, há quem abra o escapamento para que o som seja mais alto, estridente, irritante. É uma forma de chamar a atenção e dizer: “Eu tenho uma moto! Olhem para mim!”

Lembrei-me de um vizinho que tive em 1978, que tinha uma Vemaguete, motor dois tempos, e que, todo dia às 6:00 da manhã, ligava o motor e ficava acelerando. Um dia perguntei a ele o porquê disto e ele me disse que era para “não arriar a bateria”. Mas ele conseguia irritar toda a vizinhança. Era a forma que ele tinha de anunciar a todos que tinha um carro.

No domingo, no início da noite, estava sentado em frente à minha casa com minha esposa e uma pessoa que nos visitava. Nisto apareceu um carro, com três jovens dentro e, para estacionar na frente da casa do outro lado da rua, acelerou tantas vezes que tivemos que interromper a conversa. Escapamento aberto, fazia questão de mostrar que tinha um “possante”! Deu pena do energúmeno!

Algumas perguntas: existe a lei do silêncio em Campinas? Se tem, está em vigência? Quem já foi multado por ela? Você que é vizinho de barzinho e já denunciou, resolveu o problema?

Tenho certeza de que serei voz que clama no deserto! E o inferno vai continuar!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 16 de setembro de 2020

ALEGRIA E TRISTEZA

Há várias propostas de abordagem ao livro bíblico de Eclesiastes, o livro do Sábio: um cético, um desiludido, um desesperado, um filósofo da mediocridade ou ainda um pregador da alegria. Tenho para comigo que o autor é uma pessoa de idade, experiente nos percalços da vida, que terminava seus dias sem entusiasmo e descontente com o que havia vivido. Um deprimido? Talvez. Um amargurado? Provavelmente. Uma pessoa triste? Com certeza. Um sábio? Sem dúvida. De uma coisa todos concordamos: ele era tão humano quanto nós, porque ao lê-lo nos identificamos com suas experiências, frustrações e conclusões. Isto é ainda mais verdadeiro quando se refere ao binômio alegria/tristeza.

O Sábio afirma que “tudo neste mundo tem o seu tempo; cada coisa tem a sua ocasião.... Há tempo de ficar triste e tempo de se alegrar; tempo de chorar e tempo de dançar. Ao colocar alegria e tristeza como não concomitantes no tempo, mostra a impossibilidade de alguém sentir-se triste e alegre ao mesmo tempo. Quando passamos por tristezas, ainda que haja algum motivo para alegria, parece que ela sufoca ou nos cega para as coisas boas. Quando há motivo de alegria e em seguida surge algo que nos entristece, parece que a tristeza tem mais força que a alegria e prevalece nos nossos sentimentos.

Por mais que fujamos da tristeza, há um tempo para ela na vida. Não escolhemos ficar tristes. Alegria e tristeza são sentimentos que surgem em decorrência das circunstâncias, quase todas fora de nosso controle. Não há quem não busque a alegria e que não fuja da tristeza e mesmo assim a tristeza ocorre. E não há quem não queira eternizar a alegria e mesmo assim não consegue.

Se há tempo para tristeza e alegria, significa que elas não são eternas. No dizer do salmista,o choro pode durar a noite inteira, mas de manhã vem a alegria” (30:5). A tristeza pode durar um tempo, mas não é eterna.

Há uma diferença na percepção humana da alegria e da tristeza: a alegria é sempre passageira e a tristeza duradoura. A alegria tem a estranha capacidade de nos anestesiar para as demais coisas da vida. O Sábio diz que “você não sentirá o tempo passar, pois Deus encherá o seu coração de alegria” (5:20). Ela nos inebria e só pensamos na causa da nossa alegria.

A tristeza, por sua vez, tem a capacidade de aguçar nossos sentidos, nos colocar em alerta geral, fazer pensar na causa da tristeza e em todas as consequências que ela traz.

O salmista diz ainda que a tristeza se aguça à noite: Estou cansado de chorar. Todas as noites a minha cama se molha de lágrimas, e o meu choro encharca o travesseiro (6:6). A tristeza tem a capacidade de ser mais aguda quando queremos dormir. É quando ela dói mais, que a cama se transforma em espinheiros e o travesseiro em pedra.

A vida é cheia de alegrias e tristeza e nenhuma das duas é eterna. O Sábio inverte esta lógica chamando a atenção para os perigos da alegria e para os benefícios da tristeza. Ao fazê-lo redimensiona a percepção destes sentimentos e nos dá a chance de tirar lições para viver sabiamente.
Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

(FÉ)SIOLOGISMO

Estudiosos e teólogos vêm levantando a questão das implicações ideológicas que se entrelaçam no campo das doutrinas religiosas. Por se tratar de área que trabalha com texto religioso crido como sendo “A Revelação de Deus”, onde o próprio Deus teve participação ativa ao dar-Se a conhecer, os cristãos têm tomado o estudo da Bíblia seria e reverentemente.

No entanto, não são poucos os casos em que estas atitudes cedem lugar às concepções esdrúxulas e fanáticas. O fundamentalismo com a tese de inerrância e infalibilidade das Escrituras gerou uma plêiade de intérpretes que, por trabalharem algo que julgam ser inerrante, também assumem que suas interpretações são inerrantes e infalíveis.

Tem-se chamado a atenção para a influência do "reconstrucionismo" em setores carismáticos evangélicos, como forma de acrescentar poder e prestígio à igreja e ajudar na recuperação do poder político que a igreja teve com a era constantiniana. Este poder foi abalado com os Anabatistas, no século XVI, na Reforma Radical. Eles defendiam a completa separação da Igreja e do Estado.

O reconstrucionismo nasceu nos Estados Unidos nos anos 60 e ganhou força nos países latino-americanos nos anos 80. Esta teologia está vinculada a religiosos conservadores estadunidenses e à política neoliberal. Ela se disseminou por toda a América como ofensiva contra a Teologia da Libertação. As pregações religiosas carismáticas, pentecostais e neopentecostais passaram a ser pró-capitalismo (teologia da prosperidade) e individualista (religiosidade televisiva e individualista).

O reconstrucionismo afirma que os cristãos têm a missão dada por Deus, um "destino manifesto", devendo assumir posições de poder no governo, com o objetivo de reconstruir os países. As nações latino americanas, por seu passado indígena, cultos afros “pagãos” e a colonização católica “idólatra” legou uma maldição secular que deve ser quebrada com atitudes de coragem e destemor.

Para tanto, há grupos, até mesmo de empresários e profissionais liberais, buscando as “fortalezas de Satanás em cada cidade” para “tomar posse em nome de Jesus”. É a concepção do “evangelho pleno” Inicia-se o processo de reconstrução a partir da base moral e espiritual. É a ampliação do governo de Deus através da igreja, ocupando espaços de poder que foram descuidados. Ministros de Estado evangélicos têm sido celebrados como benção de Deus!

Estamos saindo religiosidade de monopólica para uma concorrencial. O crescimento numérico dos evangélicos levou ao crescimento do campo evangélico e carismático, penetrando nos diferentes níveis da sociedade". Com isto cresce o interesse de alguns desses grupos pela participação política, notadamente em setores que há alguns anos eram os mais reacionários a tal participação.

Esta participação na participação política passa pelo clientelismo e fisiologismo, na busca de benefícios para a igreja e para os evangélicos, apoiando direta ou indiretamente setores evangélicos marginalizados do poder durante tantos anos.

Os exemplos de fisiologismo e clientelismo são muitos. Sanguessugas: escândalo das ambulâncias, quando toda a bancada da IURD estava envolvida; Eduardo Cunha: filado à Assembleia de Deus, tem dezenas de sites “evangélicos” e é acusado de usar igrejas para lavar dinheiro; Família Garotinho: Presbiteriano, tinha programa radial de orientação. Ele e a esposa já foram presos; Bispo Crivela: Já teve vários pedidos de impeachment pelo desastre na saúde,  agora com o cerceamento do trabalho da imprensa; Flordelis: líder da bancada evangélica, cantora, dona de uma denominação, acusada de ser a mentora do assassinato do marido e de práticas sexuais nada ortodoxas; Pr. Everaldo: atualmente preso, dono de um partido e envolvido nos escândalos da Saúde no RJ.

Somos agora surpreendidos com um projeto de lei do filho do R. R. Soares, perdoando dívidas de um bilhão de entidades religiosas flagradas em esquemas fraudulentos.

Tudo com fundamentação bíblica!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

PRIVILEGIANDO NEGÓCIOS DE NEGROS

Não me lembro onde foi que li. Sei que era uma publicação em inglês e, provavelmente, de um grupo anabatista dos Estados Unidos. Historicamente os anabatistas têm tido posições e proposto movimentos semelhantes, trabalhando causas relacionadas à justiça e à paz.

A partir dos problemas de violências contra negros nos Estados Unidos, coisa que já ocorre há muito tempo em função do racismo estrutural, alavancado pelas violências contra o George Floyd e Jacob Blaker, a proposta era de que se privilegiasse a compra em negócios cujos donos fossem negros. Achei interessante e pensei: vou fazer isto.

Comecei a percorrer mentalmente os negócios onde tenho comprado as coisas: alimentos, remédios, pães, bolos, material de construção, papelaria, restaurantes, lanchonetes, serviços de conserto de eletrônicos, oficina mecânica, feira, etc.

Fiquei assustado! Não encontrei um só negócio que tenha um proprietário negro. Rodei as lembranças e não me lembrei de ter visto algo assim há muito tempo. Rodei a memória mais ampla: locais onde houvesse negros trabalhando. Nada! Ampliei o espectro para as cidades onde já morei e os negócios que costumava frequentar e usar. Nada!

Ao final de muitas lembranças e recorridos mentais, lembrei-me de duas farmácias que têm atendentes e caixa que são negras. Em uma delas, elas trabalham no período da madrugada! Não consegui me lembrar de um restaurante onde houvesse um garçom negro, uma lanchonete onde houvesse um atendente negro, uma padaria onde o padeiro fosse negro.

A coisa me intrigou e comecei a pensar se sou eu que não sei escolher os negócios que uso, ou é um problema estrutural. Perguntei a algumas pessoas conhecidas e a constatação foi a mesma: os negócios são brancos.

Já tive pedreiros e serventes negros trabalhando em minha casa. Já tive pintor, encanador, eletricista, e alguns deles eram negros. Serviços braçais. Rodei a memória e só me lembro de um professor negro que tive, nos Estados Unidos.

Há algo de errado. Quando morei nos Estados Unidos, tinha por costume ir com a família para as igrejas negras, por causa da música e dos corais. Sempre achei que os Estados Unidos é a nação mais racista do mundo e que o dia mais racista é o domingo de manhã quando as igrejas se reúnem: brancos e negros em igrejas separadas. Fui, certa vez, a convite de um colega de curso, pastor de uma igreja negra, assistir a Cantata da Páscoa. Depois da Cantata ele me convidou para ir ao púlpito com ele e dar uma saudação à igreja. Ele fez questão de dizer que, nos 35 anos daquela igreja, era a primeira vez que um branco subia ao púlpito e falava à igreja!

É verdade que não temos isto no Brasil, mas também é verdade que, nas igrejas protestantes e as chamadas históricas, os negros são raridade. Certa feita fui assistir uma Cantata de Natal em um templo que tinha umas duas mil pessoas. Nenhum negro ou negra no coral e não consegui achar um só no meio dos assistentes. Podia ter, mas não vi. É raridade.

Já escrevi aqui uma coluna “O Shopping é Branco”. Tenho que dizer: os negócios são brancos. As igrejas de classe média são brancas. O acesso ao pastorado nas igrejas protestantes e históricas tem degraus altos para que os negros possam subir. Os negros na Câmara Municipal, Assembleia Legislativa, Câmara e Senado, são poucos (há raríssimas exceções). Os ministros são brancos.

Falta cor nos espaços públicos do Brasil!

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

PACIFICADOR BALEADO

Há momentos em que penso que estamos nos tempos da barbárie. Questiono-me se a civilização deu passos à frente. Poderia citar muitos fatos que me trazem este questionamento, tanto no Brasil, como em outros países.

Para citar exemplos deste mês, o caso da menina estuprada pelo tio, que engravida, tem risco de vida se continuasse com a gravidez e a invasão da casa da avó por parte de “religiosos” tentando impedir o procedimento legal.

Não bastasse a barbárie da morte de George Floyd, asfixiado por um policial que ficou ajoelhado em cima do seu pescoço por nove minutos, temos agora a cena de dois policiais atirando pelas costas em um negro. Tal se deu com Jacob Blake, na cidade de Kenosha, Wisconsin.

O que mais choca é que ele tinha parado seu carro para apartar uma briga entre duas mulheres. Saiu em missão de pacificar e, sabe-se lá por que, a briga virou contra ele, não pelas mulheres, mas pelos policiais. Deixou os filhos no carro para realizar uma missão de paz e foi baleado nas costas, por policiais truculentos, imbuídos de um racismo estrutural. E foi baleado na frente dos três filhos que estavam no carro!

Nestas horas eu me pergunto como o texto da bem-aventurança pode ser aplicado, entendido, ou pode explicar esta situação: “Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Como o Jacob Blake e seus familiares podem entender, aceitar e ser consolados com a afirmação de que seu pai, covardemente baleado, pode ser chamado Filho de Deus?

Eles estão angustiados com a saúde do pai, levado em estado grave para o hospital. Eles estão chocados com a brutalidade de quem, se sentindo dono da verdade e da vida alheia, decide, à queima-roupa e pelas costas, atentar contra a vida daquele que os deixou no carro (em segurança, diria eu), para ir fazer um ato que é obediência ao mandamento bíblico: pacificar.

Como já ocorreu em outras situações semelhantes, o ato gerou uma onda de revolta, com mais violência gerada. Este paradoxo é intrigante: um ato de pacificar gera a violência policial que, por sua vez, gera a violência social. A pergunta que fica: é errado tentar ser pacificador em uma sociedade estruturalmente violenta?

Como ser pacificador no Brasil onde o discurso de violência vem de cima? Quando os que têm a incumbência constitucional de gerar a paz social, pregam o armamentismo? Como ser pacifista em uma nação onde a violência no campo gerou muitas mortes (Padre Jósimo, Chico Mendes e Dorothy Mae Stang, para citar só três), onde o ministro do Meio Ambiente é o maior agressor ambiental que se conhece hoje em dia? Como ser pacificador quando a polícia entra nas favelas em suposto confronto com marginais e mata, com balas perdidas ou dano lateral, crianças em suas casas?

O pacificador, além de sua tarefa imediata de gerar paz em situações de conflito, também tem o dom de desmascarar a violência. A pacificação é um processo com exigências radicais. Não se pode ser pacificador com medo, com meias palavras. Em certa medida, trabalhar pela paz é trazer a luta contra a violência estrutural.

Em nenhum momento Cristo disse que a vida cristã seria fácil. E não é para menos que, anunciando a paz, foi crucificado!

Marcos Inhauser

 

A CULPA AGRESSIVA

Normalmente experimentamos sentimento de culpa quando reconhecemos que somos a causa do infortúnio de outra pessoa. A teoria intrapsíquica afirma que as regras e valores morais internos que aprendemos e introjetamos desde a infância, quando violados por nós, nos leva a um sentimento de culpa. A culpa, então, é o resultado emocional de um conflito entre nossas regras e valores e nossos comportamentos ou omissões. Nessa visão, a culpa diz respeito ao sentimento de ter desobedecido aos próprios valores morais internos, mesmo sem agir ou compartilhar o sentimento com os outros. Isso pode causar uma expectativa de punição, expiação ou pedido de desculpas. A pessoa que se sente culpada tem a sensação de ser uma “pessoa má”.

Percebe-se que o sentimento de culpa se dá em razão de ações positivas cometidas, intencionais ou não, ou de ações omissivas, também intencionais ou não. A pessoa se sente culpada pelo que fez ou deixou de fazer e este sentimento o leva a várias opções possíveis, no sentido de amainar o sentimento que passa a corroê-lo.

O primeiro deles é reconhecer que errou ao fazer ou deixar de fazer e assumir este erro junto à pessoa afetada. Se isto já não mais é possível, pelo falecimento ou impossibilidade de encontrá-la, tal reconhecimento pode ser feito junto a terceiras pessoas, um confessor, por exemplo.

O segundo comportamento é encontrar motivos para o seu ato ou para a sua omissão. A pessoa buscará um sem-fim de razões para mostrar que o erro não foi intencional ou que não teve a dimensão que se que dar. É um mecanismo de fuga à responsabilidade.

O terceiro é culpar outros pelo seu erro positivo ou omissivo. Ele não é culpado porque alguém o fez errar ou se omitir, alguém não o informou, ou alguém fez algo que o impediu de agir corretamente. Santo Agostinho, em seu livro “Confissões” tem esta atitude ao dizer que “foi forçado a pecar”.

O quarto é quando a pessoa deixou de fazer ou fez algo e outra pessoa assumiu o papel e fez o que ela deveria ter feito. Há nisto um duplo sentimento: o do erro ao ter falhado e o da acusação sub-reptícia de alguém que assumiu o seu lugar fazendo o que ele não fez. A dimensão da culpa aliada ao sentimento de estar sendo acusado pela prontidão do outro em fazer o que se esperava que ele fizesse, leva a pessoa a denegrir as competências ou habilidades de quem o substituiu.

O mecanismo de achincalhar a pessoa que fez o que ele não fez é cruel e perde o sentido da ética e ultrapassa os limites da civilidade. Para não se sentir culpado e acusado, passa a acusar quem cobriu sua falha com acusações não comprovadas, com tentativas de diminuição das capacidades, habilidades e até mesmo desmerecendo os logros acadêmicos ou profissionais que a pessoa que o substituiu tem. A culpa passa a ser agressiva, dirigida a quem fez o que o agressor não fez.

Na teoria interpessoal, por sua vez, a culpa resulta da consciência de ter causado um dano injustificável a alguém, não ter se comportado de forma altruísta ou amorosa, resultando em comportamento egoísta, fruto da falta de empatia e compaixão, mesmo se tratando de pessoa supostamente amada. Aqui, o gatilho é a presença de uma pessoa em sofrimento ou necessidade, sendo injustamente penalizada pelos seus atos, não ajudando, desprezando ou, simplesmente, ignorando.

Aqui entra o auto-engano: a pessoa má não é quem deveria ser e não amou, mas quem no seu lugar amou e cuidou!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

UMA ESTANTE DE LIVROS NAS COSTAS

Nove entre dez entrevistados na televisão, lives de especialistas ou vídeo de “otoridades” em algum assunto, tem uma biblioteca nas costas do indivíduo. Há algumas considerações que merecem ser feitas sobre este fato.

Esta é uma forma de mostrar aos que se dispõe a ouvi-lo ou para chamar a atenção dos que passam de relance, que a pessoa é uma pessoa letrada, com muitos livros lidos e vasto conhecimento na área em que pretende falar alguma coisa. Quanto mais livros o sujeito tiver para mostrar, mais autoridade, supostamente, ele tem. Há um deles, o Guga Chacra, que tem livros dos dois lados de sua cabeça, todos colocados para que se facilite a leitura dos títulos e, como deveria ser, relacionados a assuntos do Oriente Médio e mundo árabe. Tal se dá porque ele é, de fato, um especialista no assunto. O que me chama a atenção é a arrumação deles. Parece que estão ali para promover os livros e se assim for, deve ganhar ou livros grátis das editoras, ou algum cachê.

Um ministro do STF tem uma coleção da Enciclopédia Mirador nas suas costas. Ela só pode ser relíquia bibliográfica por ser tão antiga e desatualizada. Deveria estar no sebo! Há quem mostre uma biblioteca toda certinha, com os livros arrumados por tamanho e, parece, por cor também. As que vi pertencem a mulheres: Cristiana Lobo e Eliana Cantanhede. Há quem tenha uma biblioteca com livros em desalinho e meio que jogados ao léu (Jorge Pontual). Há jornalista que aparece para dar seu furo ou reportagem em frente a estantes que supostamente têm livros.

Recebi há algum tempo uma “live” de pessoa que conheço bem e que o último livro que leu foi para a última prova na Faculdade. Lá estava ele em frente a uma biblioteca que nunca vi na sua casa!

Outra coisa, relacionada a esta é a quantidade de “lives” e vídeos feitos por pregadores. Eles obedecem a dois parâmetros: biblioteca nas costas ou uma baita Bíblia que o pregador segura nas suas mãos. Parece dizer que, quanto maior for a Bíblia, mais autoridade espiritual ele tem. Ao segurá-la de forma meio descuidada, quer passar a ideia de que tem familiaridade com o livro, tal como fazia Billy Graham ao dobrar a sua, encostando a capa na contracapa.

Com a tecnologia do chroma key, podemos duvidar que a biblioteca às costas realmente está ali ou foi montagem de cena. Posso perfeitamente ir à biblioteca municipal ou da Universidade, gravar um vídeo das estantes e depois montar a cena. Eu me coloco na frente deles e os espectadores acharão que tenho uma enorme quantidade de livros e que sou letrado.

Uma coisa também me chama a atenção nestes dias de pandemias: é raro ver um dos epidemiologistas, infectologistas, virologistas aparecer com biblioteca nas suas costas. Preferem aparecer no laboratório, como se tivessem parado a pesquisa para dar a entrevista. Há nisto também um ranço ideológico (no sentido de busca de poder).

Como estamos na era em que qualquer analfabeto se acha especialista em alguma coisa ou em tudo (haja vista a profusão de comentários de quem mal sabe escrever que está nas redes sociais, gente que não aprendeu que na língua portuguesa se usa vírgulas e pontos finais), uma biblioteca nas costas dá uma sensação de “otoridade”. Mesmo que seja montagem!

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

CONHECER-SE: UM DILEMA HISTÓRICO

Demócrito nasceu e viveu entre 460-370 a.C. Filósofo do período pré-socrático, foi o primeiro a formular a teoria atomista que afirmava que tudo é composto de átomos, partículas indivisíveis que diferem apenas pela forma, tamanho, posição e ordem. Não se conhece seus escritos completos, só alguns fragmentos, muitos deles através de citações de Aristóteles, quem era seu crítico.

Ele tem alguns conceitos universais (no sentido de que valiam para a sua época e para a nossa). No fragmento 72 ele diz: “desejar violentamente uma coisa é tornar-se cego para o demais”. A paixão desenfreada por algo ou por uma ideia é sinal de cegueira para outras verdades. O vida focada em um só assunto perde a dimensão e visão das demais. A pessoa passa a ter uma visão de tubo e os ouvidos se fecham para tudo o que não confirma o que crê.

O exagero de acreditar em algo mostra que, de alguma forma, o sujeito está fora de si ou que perdeu o senso de realidade. É um obstinado, cego para outras perspectivas e possibilidades, com a impossibilidade de enxergar-se. Acaba sendo ridículo.

O filósofo Karl Popper, filósofo da ciência, rejeitou as posições indutivistas clássicas propondo o falsificacionismo, porque, para ele, pelas ciências empíricas não se prova nada, mas se falsifica. Tudo deve ser examinado por experimentos decisivos. O que a experiência e as observações podem e fazem é encontrar provas da falsidade de uma teoria. Quando isto acontece, há que eliminá-la por ser falsa e buscar outra que explique o fenômeno em análise. Percebe-se assim que, para o obcecado pelas verdades que crê, não admite ser questionado e muito menos, que alguém prove a falsidade de seu posicionamento. Ele é a verdade e nunca admitirá que pode estar errado. Entra-se no surreal de que a mentira é “liberdade de expressão”.

Quem se conhece a si mesmo, sabe dos seus limites e não exagera na convicção de suas crenças, antes é alguém aberto ao diálogo, ao confronto, ao contraditório. Aceita que, mesmo que creia com toda a força dos argumentos que têm em mãos, pode ser que seu ponto de vista esteja errado ou seja falso. Isto é maturidade. Quem não se enxerga não vê o outro. Só aceita quem diz o que ele diz ou o que ele quer ouvir. O que pensa diferente é inimigo.

O sujeito maduro tem a capacidade de examinar seus próprios sentimentos, de ver-se desde fora de si mesmo, distanciar-se dos exageros que os sentimentos promovem e, assim, reduzir o risco da miopia obtusa que a extremada convicção lhe dá. Cabe aqui o provérbio bíblico: “quem confia no próprio coração é um insensato (28:26).

Em tempos de exacerbação das opiniões via redes sociais, onde cada um tem o poder de escrever e dar sua opinião sobre tudo, mesmo sobre coisas que nunca soube que existia ou que não é de sua área de conhecimento, percebe-se, seja pela ortografia, pela sintaxe ou pela lógica que se revelam ignorantes. No dizer do apóstolo Paulo: “Desviando-se algumas pessoas ..., perderam-se em loquacidade frívola, pretendendo passar por mestres ..., não compreendendo, todavia, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações.” (ITm 1:11).

Marcos Inhauser

 


quarta-feira, 29 de julho de 2020

TOLICE RENITENTE

No seu livro “Autoengano”, Eduardo Giannetti traz a seguinte afirmação; “Se o tolo persistisse em sua tolice ele se tornaria sábio” (pg 56). Citando Platão ele afirma que “todas as tentativas são arriscadas, e é verdadeiro o provérbio segundo o qual aquilo que vale a pena nunca é fácil (República, 497 d). Ao comentar o assunto ele afirma que a atividade humana é como uma loteria, onde a aposta precisa ser paga na entrada, o que leva a melhor parte das esperanças e energias. No entanto, as chances de sucesso são mínimas e para cada ganhador há uma multidão de perdedores”.

Isto assim é, continua Giannetti, porque a capacidade humana de autocontrole, perseverança e autoconhecimento é limitada. O saber não é condição suficiente para o fazer. Há os que, mesmo sabendo muito e ensinando, diante de uma tarefa que exige tenacidade e persistência, desistem ao enfrentar os primeiros embates e justifica sua falta de competência em fazer, acusando e atirando pedras em tudo e todos, como se eles fossem os culpados da sua incompetência. Heráclito dizia que “a natureza ama esconder-se” (frag. 123).

Minha sogra tinha um ditado: “cada ladrão julga por sua condição”. Sem saber, ela afirmava algo que filósofos clássicos já haviam dito. Vejo no outro aquilo que não quero ver em mim, e como não tenho coragem de afirmar que tenho os erros que aponto no outro, é mais fácil projetar e acusar os outros ao invés de me denunciar. Para que não se descubra o seu ignominioso interior, o acusador precisa que os outros creiam na sua credibilidade, que é honesto nas intenções que tem. A máxima por trás disto é o que Protágoras dizia: “qualquer um que não professe ser justo só pode estar louco” (323 b). Para tanto, via de regra, fazem autoelogios: “a minha honestidade não permite”, “tenho um currículo a zelar”, “o tempo mostrará que estou com a razão”. A questão, nestes casos, é a hermenêutica por trás das palavras para descobrir as mentiras que o acusador profere para acobertar o que nele existe.

Como humanos, o maior erro seria nunca errar. Falíveis, erramos desde a fonte da humanidade. No que pese as afirmações dos autoenganados honestos e impolutos, a sapiência está em reconhecer que todos, imperfeitos que somos, não temos autoridade para atirar pedras, por melhor que sejam as razões. O acusar o outro como responsável pelas minhas incapacidades é mecanismo de defesa dos tolos.

Bernstein, no seu livro “Against the Gods” (pg 202) cita um anônimo: “A informação que se tem não é a informação que se quer. A informação que se quer não é a informação da qual se precisa. A informação da qual se precisa não é a que se pode obter. A informação que se pode obter custa mais do que se quer pagar”. Não sei por que, mas me vem à cabeça as mentiras e desistência de um obstinado perdedor, que na loteria da vida ganhou uma presidência e mostrou sua incompetência no trato da pandemia e acusa STF, governadores e prefeitos pelo descalabro.

Para os tolos e perdedores, a busca da informação necessária é tarefa tão cara que eles não estão dispostos a pagar, porque a incompetência inata não lhes dá a resiliência para continuar até o fim e obter o prêmio da vitória. Ao ver o tamanho da estrada desiste da carreira.

A desistência é típica dos frágeis, dos tolos, dos perdedores.

Marcos Inhauser