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quarta-feira, 11 de março de 2020

A DURA BENÇÃO


Foi em julho de 1991 quando assisti ao primeiro curso com vistas ao meu mestrado. Tratava do processo de envelhecimento e o fazia em duas dimensões: o crescente envelhecimento da nação estadunidense (de resto, verdade para todas as demais) e o processo de envelhecimento individual, com os cuidados, custos e atenção que se deve dar a ele. Lembro-me, com bastante clareza, de muita coisa que foi passada, seja pele dificuldade inicial com a língua, seja porque apresentou alguns dados que nunca havia pensado.
Um deles, que me marcou muito, foi o processo visto como um retorno à infância. Nascemos precisando que nos carreguem, que nos deem comida na boca, dependentes, carentes afetivamente, vamos ganhando corpo, forças e, a cada dia, vamos nos libertando da dependência ao ponto de, em certo momento, podermos andar sozinhos. E assim caminhamos até o dia em que a idade nos tira parte das forças das pernas, nos torna mais dependentes, a cada dia temos uma nova necessidade de ajuda, precisamos que alguém volte a colocar a comida na nossa boca e voltamos a usar fraldas.
Cuidar de um bebê é cuidar da esperança: amanhã ele vai estar maior, mais seguro, mais forte e logo, logo, vai andar sozinho. Cuidar do ancião é o cuidado sem esperança: a cada dia uma coisa nova a definhar e tirar energias. É o cuidado da graça que cuida sem esperar retorno.
Na época em que estudei isto, fiquei impactado, mas uma coisa é saber a outra é viver. Nos últimos sete anos tive minha mãe morando comigo. Ela veio com 83 anos, estava bem, andava, fazia tudo, comia de tudo. À medida que foi envelhecendo com a gente, percebemos que passou a dormir mais tempo, a ter menos energia para certas coisas, resmungava quando tinha que tomar banho, ficou mais agressiva nas respostas, confundia datas, não se recordava com precisão certas coisas fundamentais da sua vida. Fomos acompanhando este processo dia-após-dia e nos certificando que a velhice é um processo de infantilização.
No curso que mencionei, por se tratar de um Seminário, deu-se muita atenção ao conceito da benção que se tem ao cuidar dos pais. Sempre acreditei nisto e vivi isto nos dias em que tivemos minha mãe conosco. Foram momentos alegres e difíceis, houve momentos prazerosos e outros em que deu vontade de mandar para uma clínica. Sempre pensei que ela seria tratada por estranhos. Aqui, por mais difícil que fosse, era um filho e uma nora cuidando dela.
Sabíamos que ela orava todos os dias por nós e todos os dias, antes de ir deitar ela vinha orar comigo. Era sempre a mesma oração que ela havia aprendido na infância e que, em certa parte, ela dava uma ênfase peculiar: “... e pela noite gostoooooosa que Tu vais nos dar”. Quando precisávamos sair à noite para uma visita ou compras ela ficava sentada na sala esperando a nossa volta, não importando o horário que voltávamos. Havia nela um cuidado e a ideia mágica de ficar nos esperando nos guardaria. Mas não era mágica: ela ficava orando pela nossa volta. Quando chegávamos, invariavelmente, ela nos recebia com um “bem vindos” espontâneo e acolhedor. Vou sentir falta disto e da oração repetida ao dormir.
Seu sonho era chegar aos 90 anos, idade que ninguém da sua extensa família havia chegado. Ela chegou, celebrou seus 90 anos em grande estilo reunindo os parentes e se recolheu para os paramos celestiais. Deixou e exemplo de uma mulher forte, dedicada, fiel ao Senhor e mãe admirada pelos filhos, noras e netos. Foi trabalhoso, mas valeu pela benção de tê-lo conosco até os últimos momentos.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 4 de março de 2020

CADÊ OS PROFETAS?


Não é de hoje que me preocupo com a dimensão profética da igreja. Não me refiro às profetadas, tão comum em centros de adivinhações e chutes prognósticos, nem aos “porta-vozes de Deus” que manipulam a vida de incautos, mas à dimensão veterotestamentária: pessoas vocacionadas para diagnosticar o presente, denunciar os pecados individuais, sejam eles cometidos por pessoas simples como pelos reis, e o pecado nacional (tão esquecido pelos púlpitos e dos animadores de auditório religioso). Falo do pro+phemi, do pro+phetai, dos Isaías, Jeremias, Amós, Habacuques modernos.
Lembro-me de ter conversado com o presidente de uma igreja protestante de Cuba em 1989, que me falava das maravilhas do ser igreja naquela nação, da liberdade que tinham em pregar e evangelizar dentro das quatro paredes, da dimensão querigmática, diacônica, didática que estavam exercendo. Quando lhe perguntei sobre a dimensão profética, senti que ele se encolheu mais que maracujá maduro. E respondeu que tudo tem seu tempo.
O mesmo aconteceu com um renomado pastor guatemalteco, diretor de seminário e aclamado como teólogo, que em uma reunião de seminários em Campinas, dizia ser a Guatemala o país latino americano mais evangélico e evangelizado em todo o continente. Na hora das perguntas eu lhe perguntei como explicava o fato de ser (falo de 1990) o país mais violento politicamente da América. Ele me disse que não estava ali para falar de política. Mas este homem, quando pastor de uma igreja que fica atrás do Palácio Nacional, permitiu que tropas do Exército se colocassem na torre da Igreja para vigiar e atirar nos manifestantes. E ele sabia que eu sabia disto, porque estive na sua igreja e constatei isto.
Olho para a igreja brasileira e fico a procurar profetas no sentido bíblico e não os encontro. Conheci o Federico Pagura, argentino, metodista, um p(r)o(f)eta, mistura de profeta e poeta. Conheci o Dom Pedro Casaldáliga, outro p(r)o(f)eta. Li sobre o Helder Câmara e o respeitei e o respeito. E entre os evangélicos? Quem foi ou é profeta? Quem está levantando de forma profética e poética sua voz para denunciar os escândalos, os desmandos, a locupletação da coisa pública, as hienas do erário, o dono do Maranhão, os boquirrotos?
Que igreja é esta, muito mais conhecida pelos “louvores”, solicitação de ofertas e dízimos, pelos escândalos de seus “líderes”, pela falta de ética em seus vereadores, deputados e senadores? Que igreja é esta que seus líderes gostam mais de holofotes, de palcos, multidões,  carrões, televisão, rádio que ter cara e coragem para denunciar os políticos? Quem é profeta nesta igreja brasileira? Quem está dando sua cara? Onde estão os Jeremias, Amós, Habacuques, Isaías, Miquéias?
Não temos profetas porque a igreja evangélica brasileira não prega sobre o pobre e o empobrecido, sofre as viúvas e órfãos, sobre a injustiça no campo e na cidade. A igreja brasileira produziu gramáticos como bem cita Eber Ferreira da Silva em sua tese (Eduardo Carlos Pereira, Othoniel Motta, Erasmo Braga, Francisco Augusto Pereira Junior, entre outros). Mas profetas? ... Nunca!
Esta é uma igreja manca porque sua teologia está centrada em uma só perna. Enferma, deficiente, anormal, porque prega um evangelho pela metade, só prega o que interessa ao grande público e não confronta os empoderados. Falta-lhe coragem para o ministério que não dá holofotes, que mais leva às cavernas que aos palcos. Uma igreja que tem mais cantores e milagreiros que pastores e profetas. Uma igreja que tem mais animadores de auditório que doutrinadores, que tem mais excitação que adoração, mais embusteiros que mensageiros.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2020

A MOTIVAÇÃO PROFÉTICA

Figura tão antiga quanto as religiões, o profeta teve status máximo na religião judaica. Durante séculos eles foram vistos, ouvidos, criticados e (per)seguidos. Há indícios e referências bíblicas para a existência de “escola de profetas”. Ao que tudo indica, a organizada por Samuel, (I Sm 10.5; 19.20) é a primeira. Elias e Eliseu foram responsáveis pela escola dos profetas, que funcionou como resistência à apostasia imperante no reino do norte (II Rs 2.3; 4.38; 6.1). Havia destas escolas em Ramá, Gibeá (I Sm. 19.20; 10.5,10) Gilgal, Betel e Jericó (II Rs. 4.38; 2.3,5,7,15; 4.1; 9.1). Uns cem estudantes faziam parte da escola dos profetas de Eliseu. Quando Elias e Eliseu foram ao Jordão, cinquenta da escola dos profetas estavam com eles (II Rs. 2.7,16,17).

Ser profeta não é uma questão de escolha pessoal, ainda que muitos assim decidam, indevidamente, devo dizer. Se olharmos para as histórias bíblicas dos profetas, constataremos que todos eles receberam um chamado e que foram relutantes em aceitar o mandato e a missão. Haja visto o exemplo de Jeremias que se sentiu chamada quando ainda era um “nah’ar” (imberbe, adolescente).

Percebe-se também que o profeta era alguém que tinha uma mensagem dura, denunciando os pecados do povo e especialmente dos governantes. Como disse Max Weber, em Israel havia uma classe social formada pelos reis e sacerdotes que explorava a segunda classe que era o povo. A terceira era a dos profetas que denunciava a exploração, se colocava ao lado do pobre, explorado, estrangeiro, órfão, e os defendia da tirania. Eles eram a oposição ao governo corrupto dos reis e sacerdotes!

Não é de estranhar que foram execrados. No dizer do escritor aos Hebreus, os profetas praticaram a justiça, da fraqueza tiraram forças, foram torturados, experimentaram escárnios, açoites, cadeias, prisões, foram apedrejados, serrados ao meio, morreram ao fio da espada, necessitados, aflitos e maltratados. Eram homens que o mundo não era digno!

Eles não alcançaram a promessa que anunciavam, mas nem por isto esmoreceram. Havia neles a consciência da vocação. Jeremias quis desistir e veja no que deu: “Seduziste-me, ó Senhor, e deixei-me seduzir; mais forte foste do que eu, e prevaleceste; sirvo de escárnio o dia todo; cada um deles zomba de mim. Pois sempre que falo, grito, clamo: Violência e destruição; porque se tornou a palavra do Senhor um opróbrio para mim, e um ludíbrio o dia todo. Se eu disser: Não farei menção dele, e não falarei mais no seu nome, então há no meu coração um como fogo ardente, encerrado nos meus ossos, e estou fatigado de contê-lo, e não posso mais. ... Mas o Senhor está comigo, tropeçarão os meus perseguidores, e não prevalecerão; ficarão muito confundidos, porque não alcançarão êxito, sim, terão uma confusão perpétua que nunca será esquecida. (Jr 20:7 ss).

Ser profeta é questão de vocação e não de opção. Ser profeta é ser chamado para ser questionado, odiado e viver em solidão porque os “amigos” fugirão na hora agá. Ser profeta é não ser o que gostaria de ser, mas é ser o que sente que deve fazer e o faz com um sentido de missão e obediência ao chamado. Ser profeta é ter experimentado o que Agostinho definiu como o chamado da “graça irresistível” e Calvino disse que “é “vocação eficaz, tão eficaz que não aceita o não!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

DIVINO TRAVESSEIRO


Com certeza você já foi se deitar algum e, no meio da noite, acorda com uma ideia nova, algo que poderia fazer, uma invenção. Ou foi para a cama com um grande problema, revirou na cama, acabou dormindo e, quando acordou, o problema já não era tão grande e grave quanto parecia no dia anterior. Ou você foi se deitar com uma mágoa muito grande de alguém e acordou percebendo que o tamanho dela parece que havia diminuído. 

Também há os que foram se deitar com um problema sobre o qual passaram horas tentando resolver e não encontravam solução. Ao acordar, a solução estava na ponta da língua.

Há também vezes que você foi se deitar e não conseguiu dormir porque o problema ou mágoa era tão grande que você não conseguia conciliar o sono. Levantou mais enrolado ou mais bravo que antes.

A experiência não é nova. Já os antigos recomendavam consultar o travesseiro. No livro bíblico dos Salmos se ensina que se deve “falar com o vosso coração sobre o travesseiro (em outras traduções diz sobre a cama) e calar” (Sl 4:4).

Os estudiosos, a partir das pesquisas que fizeram, mostram que o cérebro, quando estressado, é “envenenado” pelo cortisol, o hormônio do estresse. Quando estamos cansados ou há muito tempo nos batendo com o mesmo problema, parece que a mente bloqueia e se perde a capacidade de ver além do que já foi visto. Nem sempre trabalhar mais significa render mais. Há uma capacidade de trabalho que é natural e saudável. Não respeitar isto é risco sério à saúde.

E por que o descansar, o colocar a cabeça no travesseiro ajuda? Porque “descansa” o cérebro, baixa as guardas dos filtros lógicos e de preconceitos que atuam no nível consciente e bloqueiam avenidas cerebrais que conduzem a novos caminhos e soluções. Quando se dorme, estes filtros e bloqueios são diminuídos ou não utilizados e o cérebro tem liberdade para andar por caminhos novos, com novas conexões, ideias e soluções.

Outro importante fator para o travesseiro é a máxima que não sei se ouvi ou a estabeleci para mim mesmo: “entre a provocação e a reação, deve haver um travesseiro”. A resposta impulsiva, o ato impensado é fábrica de feridas, de inimizades, de tolices etc. Quando somos provocados (uso a palavra provocação não só no sentido negativo, mas também no positivo, quando alguém nos pergunta algo, nos pede um conselho ou orientação que exigem certa reflexão), a sabedoria pede travesseiro: tempo para pensar com calma. O tolo é impulsivo, fala pelos cotovelos, tem lição para tudo e todos, sempre tem a última palavra, é especialista em recitar e receitar o óbvio. O tolo é imaturo e o imaturo é tolo, exatamente porque seus atos e palavras não recebem o tempo de travesseiro.

Isto leva a outra máxima: “não decida hoje o que pode ser decidido amanhã”. A razão para isto é simples: podem ocorrer coisas, contratempos, imprevistos entre o tempo que você decidiu e o tempo que tinha para decidir e você terá que refazer ou voltar a atrás. Há correções e revisões que vão mostrar que o atropelo, o afogadilho, a pressa fizeram você se precipitar. Será evidência inequívoca da imaturidade.

Pense, acalme, deixe o travesseiro ensinar sabedoria.

Adoro meu travesseiro!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

A DIVINA DIFERENÇA


Já fizeram isto. Colocaram várias pessoas sob as mesmas condições e usando o mesmo aparelho de ressonância magnética funcional e as expuseram ao mesmo estímulo e viram que cada qual respondeu diferentemente no que às conexões neurais se referem.
Isto provou que cada um de nós tem uma forma diferente de fazer suas conexões neurais e que não há duas pessoas que as façam da mesma maneira. Ainda que haja a predominância de uma área cerebral estimulada, no detalhe as conexões são diferentes.
Quando olhamos algo, quando somos provocados por uma sensação tátil, olfativa, auditiva ou gustativa, cada um de nós reage de uma maneira. Daí porque tem gente que adora chuchu, abobrinha e jiló e eu detesto. E eu gosto de sashimi e tem gente que tem nojo. Isto nos leva a pensar que, quando olhamos um quadro, uma árvore florida, eu posso “sentir” a coisa de uma maneira e outro a sentirá de maneira distinta. Ambos podemos concordar que se trata de algo lindo, mas não significa que eu e ele vejamos cerebralmente a mesma coisa. Isto explica por que, diante de um mesmo fato podemos ter interpretações diferentes e até antagônicas.
Não que um esteja certo e outro errado, mas ambos trazem à tona a forma como cerebralmente as coisas acontecem. Também se pode entender por que um é mais exagerado e outro mais sóbrio nas suas alocuções, porque um é histriônico e outro moderado, veemente e passivo. O que para mim parece mentira, para o outro pode ser a mais pura verdade. Também explica por que temos mais dificuldades em ver problemas nos nossos familiares que em outras pessoas. Uma mãe tem extrema dificuldade em reconhecer problemas comportamentais ou físicos nos filhos. Há uma conexão neural que passa pelo emocional e filial que a impede de ver as coisas. É um certo mecanismo de defesa para que não sofra.
Há fatores culturais familiares, escolares e vivenciais que interferem no mecanismo da criação neural e nos fazem ser diferentes. Mesmo colocadas em situações de igualdade sócio-ambiental e educacional, dois gêmeos univitelinos serão diferentes. Com isto entendemos por que há partidos políticos, ortodoxia e heresia, fãs de música clássica e funk, pessoas menos aceleradas e outras 220V.
Quem está certo? Em tese todos. Quem é o culpado? Deus! É a única conclusão a que posso chegar quando vejo pessoas tendo problemas viscerais para lidar com os diferentes. Como me disse alguém: “ele se nega a dialogar; a palavra dele sempre é verdade”. Lembrei-me da esposa meio burrinha que viu uma notícia de um carro na contramão na autopista, colocando a vida dos demais. Ligou para o marido, também fraco de neurônio, e ele responde: “não é só um, é um monte de gente vindo na direção contrária.
Somos como somos porque o Criador nos fez indivíduos únicos e irrepetíveis. Só existe um igual a mim: eu mesmo. Não sou o padrão de medida para mais ninguém. O que penso, creio, acredito, a minha verdade, são coisas minhas. Servem para mim. Não sou exemplo infalível para os demais. Posso até ter quem goste do meu jeito de ver, pensar e sentir e queira ser igual, mas nunca será.
Ao invés de reclamar e brigar com a diferença, devemos celebrá-la e tirar proveito delas. Não tenho o dom nem as habilidades para ser enfermeiro. Minha mãe está hospitalizada em estado grave. Devo deixar a enfermeira fazer o que não sei e não posso criticar porque não sei, não entendo e não tenho jeito. Elas, sob qualquer circunstância farão muito melhor que eu faria.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 5 de fevereiro de 2020

A PETULÂNCIA DO VERDADEIRO


Sei que sempre fui chato com certas coisas e parece que, com os anos, isto tem se acentuado. Seria fruto do envelhecimento ou a quantidade de veze que já me aborreci? Tenho minhas broncas com pessoas que repetem o que dizem duas três ou mais vezes, como se eu não tivesse entendido na primeira. Acho que, ao repetir, está me chamando de burro. Detesto quando as pessoas usam o “realmente” em profusão. Quando uma pessoa solta o primeiro, começo a contar e descubro que tem gente, e até jornalistas televisivos, que conseguem falar mais de dez vezes em uma inserção de 30 segundos.

Não consigo ler artigos ou livros que trazem títulos absolutos. Veja estes exemplos: Negociação Total, Tudo sobre Inteligência Emocional, Manual Completo de Coaching, Manual Completo do Líder, etc. Citei só os que ganhei de presente e estão na minha biblioteca. Ganhei duas biografias: uma do Einstein e a outra do Chaplin. Gosto de ler biografia. Uma se chama “Einstein, uma biografia”. Li quase que de uma sentada. Adorei. Peguei a segunda: Chaplin: Uma Biografia Definitiva”. Tentei ler, mas achei pedante, cheia de detalhes insignificantes e o título me convenceu a parar de ler. Ele diz que depois desta biografia nada mais poderá ser escrito ou nada mais será descoberto sobre o gênio da cinematografia. Petulância!

Acabo de receber um artigo pelo WhatsApp: “O Verdadeiro Sentido dos Evangelhos”. Não li e não vou ler. É petulante. Só ele sabe o que “verdadeiramente” os evangelhos dizem? Tem ele a interpretação infalível dos evangelhos? Outro que recebi foi: “O verdadeiro amor”. Tentei ler, mas dizia que uma esposa que ama seu marido deve obediência irrestrita e ele. Isto é amor? Também recebi uma mensagem no WhatsApp me informando a “verdade” sobre o corona vírus e culpando os governos comunistas da China, Cuba e do PT de terem produzido vírus.

Para mim, tudo que começa alegando autoridade, verdade, tem ares de ser absoluto, eu deleto. Mas o meu lado masoquista me leva, às vezes a ler um pedaço da podridão que me mandam. Tenho meus pruridos de prestar atenção a quem começa sua apresentação desfilando o que já estudou e o que fez. Tem um escritor bastante lido que, nos primeiros livros que escreveu, falou mais da sua autoridade em escrever o que escreveu, do que explicar o que de novidade tinha a dizer. Era especialista desde motor à explosão até cesariana! Nunca comprei nem um livro do narciso. Outro dia minha esposa recebeu um vídeo de um “médico midiático” que iria discorrer sobre diabete. Estávamos no carro e fui obrigado a escutar. Ele gastou uns 10 minutos para falar onde deu aulas, onde estudou, com quem esteve, quantos livros já escreveu, quantos vídeos já produziu, quanto seguidores tem. Pedi a ela que parasse e ela, também irritada com o rosário de atributos da “otoridade”, desligou sem questionar.

Há leitores que me escrevem criticando. Tem quem me chame de comunistas, socialista, guerrilheiro, petista, herege, bolsonarista, machista, e coisas outras que nem posso repetir. O que chama a atenção nestas mensagens é o tom autoritário e absolutos das frases. Há quem me escreve na esperança de que eu dê um espaço a eles na coluna, rebatendo o que dizem. Perdem tempo.

Marcos Inhauser




quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

REPETIR E CRIAR


Uma coisa é saber de memória todas as peças musicais de Mozart ou Beethoven. Outra é saber executar cada uma delas, executando-as com perfeição. O primeiro é conhecimento, o segundo é habilidade. A habilidade pode prescindir do conhecimento, mas para tocar Mozart ou Beethoven, o conhecimento é fundamental. Sem ele e só no exercício da habilidade pode se tocar qualquer coisa, menos as obras dos gênios da música.
Conhecimento e habilidade associados formam um exímio pianista ou, até mesmo, um regente. Mas conhecer profundamente e tocar perfeitamente o que eles escreveram e compuseram não torna ninguém um compositor. Há uma enorme distância entre ser um virtuoso no piano e ser um compositor, mesmo que de músicas medíocres.
Posso ler todas as obras T. S. Elliot, posso recitar seus poemas com maestria e perfeição, dando quase-realidade ao que ele escreveu, mas daí a eu ser um poeta, vai uma distância de anos-luz.
Para ser genial na música ou na poesia não basta conhecer, mas é fundamental ter a originalidade e a rejeição do que é senso comum. É lançar um “olhar e proposta rebeldes” sobre o que se tem. Excelentes alunos na escola, que tiram nota dez em quase tudo, não serão gênios nesta ou naquela área, porque aprenderam a repetir o que lhes foi ensinado. As notas tiradas mostram o cabestreamento que o sistema educacional colocou, obrigando-os a saber exatamente como ensinaram, responder na ponta da língua, de preferência com as mesmas palavras. Qualquer desvio é punido com notas baixas.
Eles se dedicam de corpo e alma em conhecer o que há e não em produzir coisa nova. Bons alunos dificilmente serão gênios criativos. Eles podem sofrer com o sistema, mas não estão treinados a questionar, desafiar, mudar, rejeitar. A palavra-chave é obediência. E repetição. “Sempre foi assim e continuará sendo assim”.
Não serão o “aluno-do-ano” ou o “empregado-modelo” que mudarão o mundo. Se queremos mudanças não peça a eles. Estudos têm mostrado que as pessoas que conseguiram mudar o mundo ou uma área do mundo não foram crianças excepcionais na escola. Porque se rebelaram contra o sistema impositivo do conhecimento existente, tiveram a audácia de propor coisa nova, diferente, que foi uma ruptura com o dado. Os alunos “caxias” fazem de tudo para receber a aprovação dos pais e professores e para isto reproduzem o que existe. Os alunos rebeldes não se prestam a agradar ao sistema, mas em propor novidades.
A ênfase no sucesso é uma forma de “criar autômatos”. Para se ter sucesso precisa ser obediente, seguir as regras, trilhar caminhos já percorridos. Leem o que podem de biografias de pessoas que foram exitosas e tentam repetir o que eles fizerem para chegar ao topo. Quanto mais se valoriza o sucesso, menos se dá asas à imaginação da criatividade. É a busca incessante do sucesso garantido.
Para ser um gênio e mudar o mundo é preciso ter a coragem para a destruição criativa. O novo e a invenção, requerem que coisas velhas sejam derrubadas, quebradas, destruídas. Estabelece uma ruptura no modo de fazer e propõe a novidade. É revolução e não reforma. Para ser original há que se ter estrutura emocional e resiliência para aguentar os trancos e pauladas que os conservadores darão. Ser a novidade é coisa para gente grande, emocionalmente bem firmada. É perseguir o objetivo mesmo que isto custe milhares de tentativas frustradas, como foi com Thomas Edison até que inventou a lâmpada.
Marcos Inhauser


quarta-feira, 22 de janeiro de 2020

EMPREJA


A coqueluche da ciência destes dias é a engenharia genética. Começou fazendo experimentos com plantas para produzir espécies mais resistentes, depois passou para os animais, chegou à clonagem e boatos dizem que já clonaram seres humanos. Parece ilimitada sua capacidade em produzir novidades.
Ela chegou também ao campo das igrejas. A partir da década de oitenta, começaram a aparecer os primeiros seres híbridos entre a empresa e a igreja. E disto nasceu uma espécie bastante robusta e vistosa que é a empreja.
Como todo novo ser criado em laboratório, este também precisou incorporar certos vocábulos novos ou assimilar outros do mundo com o qual se associou. O pastor foi cedendo espaço para o líder. O pastorado passou a ser mais administrativo que relacional. A hierarquia tomou conta e surgiram centenas de apóstolos, bispos, profetas, missionários, evangelistas, uma nova geração com títulos bíblicos que estão mais para a Qualidade Total que para o pastoreio do rebanho. O discipulado virou coaching, evangelização agora é marketing da igreja. O trabalho deles passou a ser medido em termos quantitativos e não mais qualitativos.
A empreja passou a ser avaliada em termos de crescimento, renda, arrecadação, tamanho da platéia, níveis de decibéis no momento do louvor. O financeiro passou a falar mais alto que o espiritual. Como me confidenciou um pastor, tem Deus Revelado a ele que a saúde espiritual de sua igreja deve ser medida pelo saldo da conta corrente.
A empreja não evangeliza, faz marketing; não tem rol de membros, tem cadastro de freqüentadores; não tem assembléia, tem liderança que decide em nome da comunidade. Na empreja o fiel não pensa, repete. É um autômato de uma linha de produção em série, bem ao estilo henrifordiano. Na empreja o narciso de um ou alguns têm completa liberdade de expressão. Tal como aquele jogador de futebol que bate escanteio e corre para a área para cabecear, na empreja o narciso ora, canta, prega, dá a benção, faz a coleta e não muito raro, gasta o dinheiro arrecadado.
Na empreja é pecado perguntar, mas é virtude submeter-se; o assunto predileto é autoridade na visão bíblica, onde é maldito o que se levanta contra o “ungido do Senhor”, que é o pastor-proprietário do rebanho. Alguns chegam ao cúmulo de alterar o estatuto para prever que ninguém pode levantar qualquer assunto na Assembléia sem que seja do conhecimento e aprovação do pastor da igreja.
Na empreja se valoriza o tempo de exposição na mídia, pois, como empreja que tem um produto a vender, a salvação em Jesus Cristo, quanto mais ela esteja visível tanto mais sucesso terá. Daí porque tantos programas religiosos na TV.
Os princípios de qualidade total substituem os valores bíblicos e teológicos. O pastor deve ganhar pela sua produtividade: um porcentual pelo número de freqüentadores e outro pelo volume de ofertas levantadas. Em alguns casos, a fórmula é: o dízimo arrecadado é para o líder (pastor, apóstolo, bispo ou seja o que for) e as ofertas extras são para pagar as despesas de funcionamento da empreja.
Este ser geneticamente produzido está privatizando o céu, com lotes à venda nas emprejas, quais imobiliárias da eternidade. Emprejários tem conseguido mandato político e se arvoram em porta-vozes dos mundo religioso, mal denominado de evangélico.

Marcos Inhauser


quarta-feira, 15 de janeiro de 2020

SONS E BARULHO


Ruídos. O vento faz o seu, o mar ruge, os galhos estalam, os cachorros ladram. Eles vêm de toda a parte. O que os caracteriza é que eles são sons sem sentido aparente, desconexos, sem mensagem. Para ouvidos mais atentos um vento pode sinalizar algo, o estalo de um galho pode prever uma tragédia, um cachorro ladrando pode ser anúncio de algo.
Há os que são harmônicos com os que ocorrem em música sinfônicas, os produzidos por orquestras, órgãos, pianos, violinos. São sons com uma delicadeza ou até mesmo certa ênfase, mas que nos indicam que há muito mais por trás deles. Há uma certa previsibilidade na próxima nota, um encadeamento sonoro quase que lógico. E como se ficássemos esperando a próxima nota e, quando ela vem, enche o vazio que estava à sua espera. Há um sentimento de saciedade quando as notas nos alcançam, como se nossa vida estivesse a depender delas ara renovar nossas foras ou pensamentos.
Mas há um som que é fundamental para todos nós: o som da palavra proferida. A palavra dá uma nova dimensão a tudo. A música, quando cantada, traz a palavra que, aliada à sonoridade e harmonia, nos provoca pensamentos. Ela é o traço distintivo que faz com que os seres humanos se relacionem, se amem, se odeiem, construam castelos e façam guerras. A palavra faz o ser humano ser qualitativamente diferente de tudo.
Nada é mais poderosa no mundo dos sons que a palavra. Nada é mais efêmero que a palavra. Ela tem curtíssima duração: dura o tempo de ser enunciada. Ela tem o vigor do instantâneo. Ela morre assim que é pronunciada. E mesmo assim é poderosíssima! Ela declara amores e pede favores. Ela declara ódios e tira dos pódios quem se arvora ser grande. Ela entra pelo ouvido e dá um trabalho imenso aos neurônios, porque semeia sonhos, planos, imaginações. Ela fomenta sentimentos de raiva, ódio, de vingança. Ela reconstrói pontes. Ela pede e declara o perdão.
Sem a apalavra o ser humano seria um “quase zero à esquerda”. Estudos antropológicos tentam reconstruir os caminhos e descaminhos para que o ser humano criasse uma forma avançada de comunicação, onde conceitos e sentimentos pudessem ser expressados. Como seriam os mais primitivos que só conseguiam falar uma meia dúzia de palavras e todas elas relacionadas a coisas concretas: chuva, água, fogo, comer, beber? Parece que um indicativo disto pode se ter no hebraico bíblico, bastante pobre em palavras e conceitos O recurso utilizado foi o uso das metáforas.
Línguas mais completas e onde se produziu boa parte da filosofia, são línguas ricas em palavras e com flexibilidade para construir novos vocábulos, como é o grego, o alemão e o francês. O português também tem sua riqueza, mas peca por certa inflexibilidade. Daí porque, me parece na minha laicidade, que usa palavrões, expressões regionais, caipirismos, onde há maior flexibilidade, para dizer o que as palavras não alcançam.
Palavra não é som emitido pelo ser humano. É o espírito humano que sai como sopro sonoro, é o vento que Deus soprou nas nossas narinas para que, aos expirá-lo, criássemos mundos. A palavra é muito mais do que aquilo que se fala e aquilo que se ouve. É algo divino entre os humanos. Por isto, Jesus nos alertou que seremos cobrados por toda palavra tola saída de nossa boca. Fala é o uso de um recurso divino em nós. Com ela somos co-criadores com Deus.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

IRA, IRÃ, IRA(QUE) E I(S)RAEL


Não é surpresa para ninguém que o Trump é um presidente irascível e imprevisível. A sua imprevisibilidade é motivo de orgulho para ele e de apreensão para os demais, tanto pessoas como governos.
O seu caráter iracundo já mostrou as garras em vários episódios. Desde a questão do muro separando o México dos Estados Unidos, passando pela forma como tem tratado os ilegais e as crianças, os filhos dos que tentam entrar ilegalmente colocados em campos de concentração, até a forma como tem lidado com questões internacionais. O início do diálogo com a Coreia do Norte foi abruptamente interrompido por sua deserção, por motivos nunca bem esclarecidos. A sua impetuosidade no trato das questões comerciais com a China, a desconsideração para com o acordo firmado pelo Barack Obama na questão nuclear do Irã, a saída do Acordo Climático, a decisão de sobretaxar aço e alumínio brasileiros, são outros exemplos deste par de características: imprevisibilidade associada à irascibilidade.
Fomos novamente surpreendidos pela sua decisão de matar o segundo homem na estrutura de poder do Irã, o Qasem Soleimani. A sua ira ele a direcionou ao Irã, na questão do acordo firmado sobre o enriquecimento do urânio. E para fazê-lo usou o território do Iraque que ele acha que é extensão do americano, uma vez que tem lá mais de seis mil soldados. Um ataque ao Irã desde o Ira(que)!
Na geopolítica mundial, a ação teve implicações que envolvem diretamente a I(s)rael, aliado ao qual destina sua fidelidade canina. Irã e Iraque são inimigos figadais e, ao mexer com o Irã, o tabuleiro também balançou para o lado da nação que já tem seus problemas com a vizinhança.
É imprevisível as ações que redundarão de tal ataque. A retórica já experimenta graus de ebulição, mas, em se tratando de Trump, é difícil dizer o que é verdade e o que é encenação. De uma coisa podemos estar certos: haverá retaliação. O problema está em definir quando e como. Mas, aqui, com meus botões, acho que quem vai pagar o pato, será Israel.
A justificativa para tal ataque é que o Soleimani era um terrorista e que os EUA têm o direito de combatê-los onde quer que seja. A definição de terrorista é subjetiva e se alinha com os interesses dos EUA. Já escrevi aqui, em outra oportunidade, que o que os EUA fizeram no Afeganistão, foi terrorismo. O ato de um homem e seus poucos aliados (Bin Laden) foi alastrado para toda uma nação. Como terrorista foi classificado o exército norte-americano, uma forma de retaliação feita pelo Irã.
Parece que, afirmar que alguém é terrorista, é a mesma coisa é como dizer que alguém é herege: sempre o outro o é e o é por questões menores. No entanto, a mesma classificação poder-se-ia dar ao exército e serviço de inteligência israelitas. Sob o pretexto de retaliar ataques de terroristas palestinos, têm desferido duros golpes conta a população civil. Quando confrontados com os danos civis, falam de danos colaterais ou que eram terroristas travestidos. A Ira justifica tudo!
Ira, ódio, vingança, retaliação. Palavras que fazem parte da cultura de muitos governantes e países. Pasma-me que, entre eles o que são religiosos (Irã), uma nação religiosa (Israel), um presidente aliançado aos evangélicos (Trump e a recente participação no encontro de Miami, os discurso de que os democratas querem impor uma agenda antirreligiosa), o discurso de ódio com todos os que são diferentes ou pensam diferentemente.
Ira, iracundo, irascível, ir(r)acional, imprevisível, intempestivo, impulsivo, insolente, inábil, inapto e inepto para o poder e a liderança. Este é o homem que promove a ira. Mais que isto, tem gente que se orgulha de imitá-lo!
Marcos Inhauser