Guimarães Rosa, no seu conto Manuelzão e Miguelim, traz uma história paradigmática. Nele, o doutor José Lourenço apareceu na fazenda onde Miguilim vivia que o saudou e passou a fixá-lo com insistência, apertando os olhos, porque “era curto de vista”. O visitante foi até à casa onde o menino morava, conversou com a mãe e passou a fazer uns testes, mostrando a certa distância os dedos da mão e pedindo que dissesse quantos havia a cada novo gesto. Ele não enxergava. Foi quando o doutor tirou seus óculos e os colocou em Miguilim que ficou pasmo: era tudo novidade. As coisas ganharam luz, vida, cores, o que não conseguia ver agora apareciam à sua frente. Ele que nunca tinha visto um grão de areia, agora podia vê-los.
Miguilim
começou a descrever as coisas que viu, as belezas nunca vistas. Saiu correndo e
contou para todos quantos achou à sua frente. Quando voltou à sua casa, o
doutor já tinha ido embora e Miguilim ficou profundamente triste. A experiência
de ver se acabara.
A mãe disse
que o doutor foi lá para as bandas dos caçadores, que voltaria. Se Miguilim
quisesse, ele podia levá-lo para a cidade e fazer óculos para ele, entrava na
escola e aprendia um ofício. O coração do menino disparava. Despediu-se de
todos, com lágrimas nos olhos. Foi para uma nova vida para uma nova visão.
Digo que
esta história é paradigmática porque ela é a história de muita gente curta de
visão. Os óculos são o estudo, a leitura de bons livros, a leitura de notícias
várias, a abertura da mente, a compreensão de que as coisas não se resumem a
uma única causa, que os problemas complexos não se resolvem com chá de
camomila, que as mudanças culturais tomam duas ou três décadas para acontecer.
O
radicalismo, o fundamentalismo, o racismo, o sexismo, o machismo tem raízes
fortes. Não acabam por passe de mágica, mas pelo constante e contínuo vigilar e
trocar as informações mentais que se tem e trabalhar para mudar o que é
conhecimento arquétipo e socializado. Há a necessidade de trocar a visão curta
de um Miguilim por outra propiciada pelas novas lentes, pelo estudo, por ver
coisas que a visão míope nunca permitiu.
Enquanto
escrevo estas coisas não me sai da cabeça as notícias que li e ouvi ontem e
esta madrugada sobre a resistência do Trump em aceitar a derrota. Para um
sujeito de visão míope, que cresceu e montou um conglomerado de hotéis e campos
de golf e que são questionados quanto à solidez da sua estrutura, o maior
exemplar de Narciso que já, perder é algo acachapante. Ele nunca mostrou ou deu
a entender que leu algum livro, que estudou além do básico (nos EUA o College)
ou que aceita conselhos ou opiniões divergentes.
Ele perdeu
excelente oportunidade de ganhar óculos para ver as coisas com mais detalhes e
precisão, de perder a visão míope. Plagiando o poeta pantaneiro Manoel de
Barros (“tudo o que não invento é falso”), o lema trumpiano é: “tudo o que não
afirmo é falso”.
Lembrei-me
da primeira leitura em voz alta, na frente da classe, que fiz na escola, assim
que fui alfabetizado. Era a de um cego que também teve um médico que o operou e
passou a ver, mas que continuou agindo como se cego continuasse a ser. A máxima
era: “o pior cego é o que não quer ver”.
Marcos
Inhauser