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quarta-feira, 17 de março de 2021

LINGUAGEM E IDENTIDADE

Vi, hoje de manhã, notícia dando conta de um programa desenvolvido pela USP-São Carlos, que “faz correções na redação e dá notas” muito próximas às do ENEM. Lembrei-me que, em 1992, quando vivia nos Estados Unidos e devia escrever minha tese para o mestrado, comprei o Gramatik, que se propunha a me ajudar no inglês, especialmente preocupado que estava com as questões das preposições. Ele me ajudou parcialmente, pois o sistema ainda era precário.

Mais tarde, passei a utilizar alguns outros recursos e, quando tenho que escrever em inglês, utilizo outro programa, que tem me alertado para uma dimensão que não havia me preocupado. Ele refaz minhas frases, inverte a ordem das minhas palavras, para me ajudar a ser mais natural, profissional ou técnico na escrita. Comecei a perceber que o que saia não era eu. Era outro ser dizendo o que eu gostaria de dizer. Mais: comecei a me perguntar se o que “escrevo” ao final destas “correções” não é o estilo médio de todo o mundo e minha identidade se perde?

Jaques Ellul em seu livro A Palavra Humilhada, já alertava para esta dimensão da mesmerização da linguagem. Passei a falar a linguagem que não expressa os meus sentimentos, emoções, minha versão da história. É um discurso escorreito na construção, mas sem identidade. Comecei a me preocupar: estava perdendo minha identidade. Ellul chama a atenção que a TV, ao eliminar o texto escrito, faz perder o rigor das palavras. A profusão das imagens como que assassina o polissêmico das palavras proferidas pelo personagem/autor das histórias.

Ao ser colunista, tenho que expressar o que penso, sinto, entendo, critico e valorizo. Isto deve ter minha identidade. Não posso escrever o que esperam que eu escreva ou que gostariam que escrevesse. Nas reações que recebo ao que escrevi, vejo uma certa simetria nos comentários, especialmente os que me criticam, como se o que dissessem são fruto de uma mesma fonte, sem o toque da individualidade criativa.

Preocupado com isto e, diante de algumas mortes de pessoas de meu círculo de relações, chamou-me a atenção para as mensagens de condolências postadas. Uma profusão de jargões religiosos, repetição do óbvio, coisa sem identidade, sem sentimento explícito. “O discurso religioso só adquire vida quando serve de apoio e de lançamento de uma palavra pronunciada, anunciada, proclamada, atual, viva, porque saída agora das páginas de um livro para voar em direção a um ouvinte” (Ellul, pg 48)

Há outra dimensão. O discurso de todo poder totalitário é justamente silenciar a novidade da linguagem. Ele utiliza a linguagem de baixo nível para se comunicar com quem tem visão reduzida de mundo. Como disse o Wittgenstein: "os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo". Onde a linguagem é obrigada a silenciar, aí encontramos a humanidade diminuída, humilhada. A censura é um estupro comunicacional. O “cala-a-boca” é um ato de assassinato do outro pela imposição do silêncio que o priva da fala identitária.

Estudando a história da Igreja para dar um curso sobre os Pré-reformadores e Reforma, percebi que a palavra na Idade Média é uma fala mecânica, repetitiva, sem nexo com a realidade da vida. A linguagem da Reforma era mais cheia de vida, com densidade emocional e que respondia às angústias dos ouvintes. Não é para menos que Lutero tenha dito, diante da repercussão de suas teses, que os anjos se encarregaram de proclamá-las.

A palavra vai sendo humilhada nas postagens das redes sociais. O Ellul não viveu para ver esta fábrica de mesmices. Se tivesse vivido, teria morrido de infarto.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 10 de março de 2021

LEMBRADO PARA SEMPRE

Uma das necessidades intrínsecas do ser humano é a da realização. Todos precisamos fazer algo para dizer que fomos nós que o fizemos. Em certa medida, somos avaliados pelo que fazemos, mais do que somos ou temos. A crise da meia-idade no homem fica mais acentuada se, ao olhar para trás, ele não fez nada do que possa orgulhar-se.

Esta necessidade é irmã gêmea de outra, a do reconhecimento. Precisamos ser reconhecidos como pessoas que somos, atuantes e fazedoras. Se alguém faz algo sem que ninguém note o que ele está fazendo, deixará de fazê-lo depois de um tempo, salva se for um louco totalmente desligado da realidade. O trabalhado invisível é um mito. Todos, sem exceção (pelo menos na minha ótica) precisamos de alguém que saiba do que fazemos. Isto leva a uma regra do trabalho: toda pessoa que faz qualquer coisa sem ter que reportar a alguém, ou deixará de fazê-lo ou nunca o fará com excelência.

Todos sonhamos em fazer algo que nos perpetue na memória dos outros. Com facilidade incrível dizemos que isto ou aquilo é um “marco histórico”, “algo que vai entrar para a história”, porque necessitamos crer que nossos atos serão lembrados ad eternum.

Estas considerações servem para introduzir minhas reflexões sobre a história da teologia e o seu processo (e)(in)volutivo.

Este processo de pensar o como a teologia foi feita e como ela se consolidou vem tomando minha atenção há muitos anos. Se me lembro bem, ainda estudante de teologia, fiz um curso de teologia patrística, tentando entender como os pais da igreja pensavam a sua fé. Lembro-me que fiquei estupefato ao ler o “Pastor de Hermas” e a “Didaque” e perceber como havia nestes escritos uma grande ênfase nas obras como asseguradora da salvação. Mais do que isto, percebia, ainda que não sei se corretamente, como certas colocações cheiravam à necessidade das obras para a própria salvação.

Desta preocupação nasceu o desejo de ler tudo quanto me foi possível sobre o período patrístico e notadamente sobre as perseguições aos cristãos. Chamou-me a atenção as “Atas dos mártires de Lião”, notadamente a descrição da morte de Blandina. Também a carta enviada por Policarpo aos crentes de Roma, pedindo que não impedissem o seu martírio, porque cria-se que a morte sacrificial por causa do testemunho da fé cristã era forma infalível de garantir a salvação. Mais que tudo, queriam ser lembrados como mártires, e o são.

Recordo que eu me perguntava como o ensino da graça do evangelho de Jesus pode, em tão pouco tempo ser desvirtuado para uma salvação sinérgica, onde trabalho humano e graça divina atuam conjuntamente para a eficácia.

Este processo de desvio se acentuou com as reflexões agostinianas que, ainda que calcada na graça irresistível de Deus, acentuou a obra humana não para a salvação, mas para a santificação. Sou salvo pela graça e isto me capacita para viver atuando de forma a ter uma vida santa. Isto fica evidente no seu livro Confissões, onde o tema do pecado sexual é levado ao paroxismo.

Trago isto à baila porque vejo a quantidade de gente buscando holofotes, querendo ser visto, conhecido e reconhecido, mas que nada vão deixam de se significativo. Não souberam ser benção na vida dos outros, não construíram algo que fosse além de suas vidas. Passaram pela vida em brancas nuvens, a ninguém abençoaram, e deles se esqueceu.

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 3 de março de 2021

OS IDIOTAS ESTÃO PERDENDO A MODÉSTIA

A frase não é minha. É de Nelson Rodrigues, um profeta não templário que o Brasil já teve.

Lembrei-me dele e sua genial frase ao ler alguns comentários postados em blogs de jornalismo de opinião, onde proliferam coisas loucas, com crassos erros de grafia, concordâncias verbal e pronominal, de conjugação verbal (especialmente quando se trata do subjuntivo). Não é necessário dizer que a lógica também é assassinada na grande maioria dos comentários.

Alguém já disse (e não consigo me lembrar quem foi) que as redes sociais abriram os bueiros sociais para que os ratos e baratas saíssem à luz do dia. A proliferação da população opinativa cresceu a taxas geométricas.

Com onze anos idade passei a trabalhar em um jornal. Na adolescência lia três a quatro jornais por dia (e quando do digo “lia” era porque eu lia mesmo). Uma das seções preferidas era a de cartas ao leitor, onde eu via a palavra discordante, o raciocínio bem embasado de pessoas que se preocupavam para escrever ao jornal, mesmo não tendo a certeza de que sua carta seria publicada. Havia até quem reclamava que nunca teve uma carta sua publicada. Sabia disto porque estava dentro da redação.

Naqueles tempos, a opinião era enviada por carta selada e postada, com nome, RG e endereço do missivista. Sem isto, não eram nem consideradas. As cartas eram abertas e previamente selecionadas, e depois o editor do espaço se encarregava de fazer a seleção final e decidir pela publicação ou não. Havia, assim, um filtro. Babaquices, críticas amargas ou azedas, textos confusos não eram publicados, por mais que o missivista enviasse outras tantas reclamando. Ele não tinha “nível” para que sua carta fosse publicada.

Havia quem se especializava em redigir para a seção de “cartas ao leitor”. Li, certa feita, que Carlito Maia (pelo que tenho de informação, era filho de Orosimbo Maia) era a pessoa que, no jornalismo brasileiro, mais teve cartas publicadas e era celebrado pelo conteúdo e qualidade do que escrevia.

O advento das mídias sociais escancarou a coisa. O filtro de um editor foi suprimido e o que se tem é uma avalanche de babaquices, obviedades, coisas sem sentido, teorias conspiratórias, apocalipsismos e milenarismos. Tem-se o cúmulo de alguém defender a volta do AI-5 e pedir a liberdade de opinião, pedir a proteção do STF quando o AI-5 limitou a atuação da corte suprema.

O que se teve foi também a multiplicação de canais “informativos”, onde as notícias são tratadas com viés ideológico de direita ou esquerda, e a verdade sendo tratada ao gosto e interesse de cada um. Surgem os noticiosos de direita, de esquerda, mas o jornalismo investigativo, que publica somente o que é comprovado, é tratado como fábrica de mentiras e distorções. Jornais seculares, com ampla história de serviços prestados, são tratados como se lixo fossem e o encerramento deles é pedido em público.

Na minha experiência, os que tem me atacado nas redes sociais, vou ver o site ou o Facebook deles. A quase totalidade não é de geradores de conteúdo, mas repetidores de memes e reportagens sem lastro na realidade ou em investigações sérias.

Mais: são pertencentes a guetos minoritários de quem se julga dona da verdade, com o direito de ofender. Não raras vezes se escondem no anonimato.

Sinal dos tempos.

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 24 de fevereiro de 2021

OS ADJETIVOS NÃO O ADJETIVARAM



No sábado dia 13 faleceu Aziz Miguel João, um tio que ganhei por ter me casado com sua sobrinha. Eu o conheci há 48 anos e aprendi a admirá-lo porque ele tinha qualidades que eu não tenho e o invejava por isto. Nunca o vi bravo e nunca soube de alguma vez que ele tivesse ficado bravo. Isto não significa que tivesse sangue de barata, antes, pelo contrário, tinha seus valores e princípios e não claudicava em preservá-los e vivenciá-los.

Conheci sua mãe, seus irmãos, irmã, sobrinhos, alguns cunhados, primos. Nunca ouvi de nenhum deles uma palavra que fosse alguma crítica ao Aziz. Uma única pessoa lhe fazia alguma restrição porque lhe pediu dinheiro emprestado e ele disse que não emprestaria. A pessoa achava que ele tinha a obrigação de emprestar. Assim era ele: sabia posicionar-se e as pessoas não o viam bravo, irritado, mas sabiam sua opinião e decisão.

Comerciante, teve negócios em Jales, onde viveu boa parte de sua vida. A primeira etapa da vida ele a viveu em Urupês, tendo se casado com a Hania. Depois do casamento é que se mudou e radicou em Jales. Pessoa conhecida e respeitada na cidade por sua honestidade e comprometimento com os princípios evangélicos, foi membro atuante na Igreja Batista. Fazia dos carros que possuía um ministério, conduzindo gente das periferias para assistir aos cultos. Durante a semana visitava cidades vizinhas para levar pregadores e começar novos trabalhos. Não me lembro de alguma vez tê-lo visto pregando e nunca soube que o fizesse. Gostava, sim, de cantar. Tinha voz forte e afinada. Também se arriscava a tocar alguma coisa no piano e no teclado.

No seu sepultamento, por concessão do poder público e pela notoriedade dele na cidade, permitiu-se que o corpo fosse velado no templo da igreja que ele frequentou durante todo o tempo que viveu em Jales. Lá estive e fui vendo as pessoas que se acercavam e ouvi muita coisa que elas disseram às filhas, esposa, netas, neto. Todos exaltando a vida e qualidade do falecido. Comecei a pensar que, como nunca havia visto antes, ninguém precisava exagerar ou mentir para falar dele. Ele não ficou santo depois que morreu: ele já era um santo em vida. Ele era tudo o que as pessoas falavam dele e todos os adjetivos usados não conseguiam dimensionar o caráter, a natureza, a índole e a benção que ele foi na vida de muita gente.

Ele nunca leu Dietrich Bonhoeffer, o teólogo alemão que afirmava que “a missão do cristão é ser Cristo para o outro”. Mesmo sem ter lido Bonhoeffer ele encarnou como poucos que eu conheço esta máxima missional: ele foi Cristo para todos os que cruzaram seu caminho.

Deus me deu a benção de conhecê-lo e conviver com ele nas muitas vezes que o visitei. Algumas destas vezes cruzamos a praça que havia em frente à sua casa, no centro comercial da cidade. Atravessá-la era um exercício de paciência, pela muitas vezes que era abordado e as pessoas queriam saudá-lo e contar alguma coisa, quase sempre da família, pois ele se interessava pela vida familiar das pessoas que a ele se acercavam.

Já ouvi muitas vezes pregadores e leigos dizerem que viver a vida cristã é difícil, é um fardo, cheio de abnegações. Conviver com o Aziz era perceber que a vida cristã é uma alegria e felicidade para quem a vive na intensidade do amor ao próximo.

Ele era uma pessoa que irradiava alegria e felicidade. Ele “sorria com os olhos”.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021

MIL E POUCO

Se não errei na conta, estou escrevendo a 1004ª. coluna para o Correio Popular. Já são quase 20 anos de escrita contínua, com um único período de férias, quando fui muito bem substituído pela Rute Salviano Almeida, pesquisadora e autora de vários livros sobre o papel da mulher na história da Igreja.

Comecei a escrever por indicação da jornalista Maria Tereza Costa. O meu compromisso era que não receberia nada em troca pelo meu trabalho semanal (nem mesmo uma assinatura do jornal!), para que eu pudesse ter liberdade. E assim está sendo até agora: nunca recebi um centavo e faço isto com dedicação e orgulho. Há quem me perguntou se era assalariado do PT, se era comissionado na Prefeitura, se ganhava do PSDB. Tais insinuações se deviam a mentes tacanhas que julgam que não posso ter opinião própria: tudo o que penso e escrevo deve ter um pagamento por trás.

Nesta relação tive muitos contatos com os editores para sentir como estava sendo recebida minha coluna, umas duas ou três vezes fui alertado de que o que eu escrevi poderia me trazer problemas judiciais e, em comum acordo, troquei a mensagem escrita, pois vi sabedoria no conselho que o redator me dava.

Umas poucas vezes falhei em escrever. Houve um tempo, logo no início que eu tinha que levar para a redação um disquete com o arquivo. Com o advento da internet as coisas foram facilitadas. Algumas vezes não consegui enviar o arquivo e isto se deveu a viagens. Onde estava não tinha internet para mandar o arquivo (isto ocorreu com mais frequência há vários anos, quando a internet era produto de luxo e não se achava em qualquer lugar). Em outras ocasiões eu ligava para a redação e pedia prazo estendido para enviar, porque, em viagem, só chegaria em casa depois das sete da noite. Sempre fui atendido com a gentileza das pessoas que me atendiam.

Já escrevi aqui que colunista não pode ter medo das críticas. É virar vidraça. Quando o colunista coloca em público e ao público as suas opiniões políticas e religiosas, fatalmente haverá quem discorde. Há os que discordam e o fazem saber em termos polidos. Há os que, discordando, julgam que atacar e ofender é o meio mais eficaz de ser ouvido.

Recebi muitos e-mails. Alguns concordando e muitos discordando. Entre os que discordavam, lembro-me de um que me escreveu uma série de e-mails. Ele lia e não entendia o que eu havia escrito, ou deduzia maniqueisticamente o que eu havia escrito. Quando critiquei o Bush pela guerra contra o Talibã, ele me chamou de comunista e terrorista, como se criticar a decisão do presidente me colocasse necessariamente como favorável à outra parte. A lógica dele era: se ele é contra A, só pode ser a favor de B. Silogismo falso.

Certa feita fiz um comentário en passant sobre o Foucault. Um leitor me escreveu criticando a citação e me enviou um compêndio, de sua lavra, com críticas ao filósofo. Por se tratar de um estudioso e mestrando na área eu o li e, diferentemente do que ele pretendia, eu fui ler mais coisas do Foucault e hoje sou um fã dele. Tenho pessoas que me enviam coisas que acham interessantes e que podem ser subsídio. A todos que me escrevem, eu respondo.

Desde o início assumi que escreveria sobre política internacional, nacional, local, sobre religião e igrejas. Assim tenho procurado fazer.

Das coisas que hoje faço, a que me tem dado mais alegria e satisfação é escrever esta coluna semanal. Em abril, na Semana Santa, completo 20 anos. Sinto-me realizado! À Tereza, os meus agradecimentos por ter me indicado.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

SENTADOR GERAL DA REPÚBLICA

O Brasil é um país capaz de produzir figuras públicas exóticas. O aparecimento do Odorico Paraguassú e sua cidade Sucupira são o exemplo de que, imitando situações reais e criando as hipotéticas, no Brasil se tem de tudo.

Nos tempos do Fernando Henrique Cardoso havia o Geraldo Brindeiro que foi galgado ao posto de Procurador Geral da República. De tão leniente em investigar as denúncias que à Procuradoria chegavam, ganhou o apelido de “Engavetador Geral da República”. Barrou uma investigação sobre o Dossiê Caribe (que depois, afirma ele, revelou-se uma farsa) e mais onze inquéritos contra Antonio Palocci que, depois, se revelou um sujeito com muitas revelações para dar na delação premiada.

Como a produção não para, tivemos nos últimos anos o “Sentador Geral da República”, o deputado Rodrigo Maia, agora ex-presidente da Câmara. Recebeu sessenta pedidos de impeachment contra o presidente e, ao que se sabe, não leu nenhum deles e nunca deu seguimento a eles. Tenho para comigo que uma pessoa que tem sessenta pedidos de impeachment, vindo das mais variadas fontes da sociedade, alguma coisa o presidente da Câmara deve fazer. No mínimo devia explicações das razões pelas quais ele sentou em cima dos processos.

O Maia, sujeito ensaboado, me faz lembrar da brincadeira nos sítios em tempos de Festa Junina, quando se ensebava um porco e as pessoas saiam correndo para pegá-lo. Assim é o Maia: liso até não mais poder. De tão político e muralista, perdeu a credibilidade e não conseguiu eleger o seu sucessor. Sai apequenado da presidência.

Também balança as alianças que estavam sendo costuradas para 2022, especialmente na aliança do Maia com o Doria, com o apoio dos Democratas. A coisa implodiu. O presidente da sigla, ACM Neto. decidiu, em cima da hora, deixar-se cooptar (há informações de que lhe ofereceram o Ministério da Educação que tem um ministro anódino, que já afirmou que está lá para ser pastor e não político). Com isto, a confirmar-se o que alguns deputados do DEM andam dizendo (palavra de político é como água de rio, cada vez que se olha é uma novidade), tem gente que vai bandear para o PSDB. Isto fortaleceria o Doria no partido e lhe daria algum alento, mas, se entendo das coisas, vai perder o tempo de televisão que o DEM tem para que possa alavancar a sua candidatura.

O ato de Maia de aprovar o bloco depois do horário regimental e que foi anulado pelo primeiro ato do novo presidente, mostra a dimensão da guerra que será o parlamento nos próximos dois anos, quando todos estarão concorrendo à reeleição. Mais que interesses da nação, aflorarão e prevalecerão os interesses pessoais. Será um tanto de gente fazendo discurso e disputando os holofotes que ficaremos enojados com a hipocrisia.

Quando o atual Congresso foi empossado e com a quantidade de novos legisladores de primeiro mandato, acreditou-se que haveria mudança nos hábitos parlamentares brasileiros. Passados dois anos, algumas estrelas da nova legislatura se apagaram, novos líderes foram removidos, a velha guarda entrou em ação, o Centrão se vendeu uma vez mais (ou voltou ao poder onde está há bom tempo).

Isto me faz lembrar de um consultor que li em livro que escreveu. Ele afirma que a mudança de cultura, seja em empresa, instituição, igreja ou, aqui no caso, parlamento, não se faz por passe de mágica, nem com pó de pirlimpimpim. Toma tempo e muito compromisso com uma nova ordem de coisas. Os antigos caciques se apagaram (Jader Barbalho, Renan Calheiro, Paulo Maluf, Sarney, José Serra e muitos outros). Nem por isto o fisiologismo deixou de ter seu espaço e o Sentador Geral da República é um sucedâneo da velha política, com cara de novo. Só a pressão popular pode fazer mudar.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

ILOGICIDADES DA FÉ

O casal, ambos com pouco mais de 70 anos, foi infectado com o Sarscov-2. Os filhos levaram o casal ao Pronto Socorro, o casal foi medicado e voltou para casa. No outro dia voltaram, marido e esposa foram internados.
Como eram inscritos em alguns grupos de WhatsApp onde compartilhavam coisas relacionadas à fé (tais como memes de versículos bíblicos, mensagens de pregadores famosos, música gospel), uma das filhas avisou nos grupos que a mãe e o pai foram hospitalizados. A coisa começou a ferver com gente dizendo estar orando. Começaram a chover jargões religiosos de cunho motivacional: “Deus está no controle”, “mesmo no vale da morte Ele está conosco”, “tudo podemos em Deus”, “praga nenhuma alcança quem tem fé”, “tudo o que dois ou três concordarem em pedir em Meu Nome, será concedido”, e uma infinidade de outras frases de mesmo sentido: “quem crê tá livre do mal.”
Diariamente, a filha municiava os grupos com informações sobre a saúde dos pais. Repetiam-se os ícones de mão juntas (em sinal de oração), carinhas tristes e outras mais. Os jargões se repetiam.
O quadro de saúde de ambos se deteriorou e a mãe veio a óbito. Nos grupos de WhatsApp proliferaram as mensagens de luto, todas clássicas: “Deus a chamou”, “agora ela está melhor que nós”, “Ela era um anjo aqui na terra e Deus a chamou ao Seu lado”, etc. Nenhuma palavra sobre o fato de que as muitas orações não tenham sido respondidas, nem sobre a falácia dos jargões motivacionais.
O pai continuava internado, UTI, prona, intubação, sedação. A cada dia, a filha postava notícias sobre ele. Os jargões se repetiam. Parece que ninguém se dava conta de que eles não funcionaram com a mãe.
Uns dez dias depois, o pai apresentou quadro de leve melhora e saiu da UTI. Houve celebração: “Deus ouviu nossas preces” era o mais comum. “Vamos orar forte pela saúde dele que Deus vai nos dar a vitória”. No dia ele teve alta, houve uma explosão de “Glórias”, “Aleluias”, “louvado seja Deus”, “nossas orações foram ouvidas” e coisas parecidas.
Uma das participantes escreveu algo mais ou menos assim: “O Fulano é um guerreiro, Deus deu a ele a vitória sobre esta enfermidade. Nós oramos juntos em uma batalha de oração, vencemos e agora celebramos a vitória da fé”.
Ninguém se perguntou: se ele é um guerreiro porque teve alta hospitalar, significa que a esposa era fraca? A fé do marido é maior que a da esposa, por isto ele foi curado e ela morreu? As orações feitas pelo marido foram mais fortes que as que foram feitas pela esposa? Em que medida a oração muda os planos de Deus para a vida de uma pessoa? O pai era mais importante para a saúde emocional dos filhos que a presença da mãe?
Perguntar não é pecado. Se analiso as atitudes da fé neste caso específico não sou herege. Não tenho resposta para as questões que eu mesmo levanto, mas de uma coisa sei: há uma fé enfermiça nos arraiais da religiosidade. Também não quero dizer que a fé mais racional seja mais fé que outra. Entendo e aceito que a fé tem forte componente emocional e certo nível de crença no impossível, o que, pode ser, em alguns casos, sinal de certa irracionalidade. O que critico é a banalização da fé via jargões motivacionais sem sentido, sem prática comprovada e sem análise avaliativa das vezes em que foi empregado e o resultado que produziu.
Como pastor que lida com expressões de fé cotidianamente, muitas vezes me perguntei em que falhava ao ver que muitas das minhas ovelhas eram verdadeiros bonsais: ficam velhas e não cresciam. Pareciam maduras, mas era ingênuas e infantis. Tenho para comigo que o método educacional mais usado nas igrejas, notadamente as denominadas evangélicas, é o da pregação. Pesquisas por mim feitas e por alguns de meus colegas, constatam que a maioria não se lembra na segundo qual foi o sermão do domingo.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

HE IS A LOOSER

Quando morei em Chicago, ouvi a expressão algumas vezes. Sempre a tomei como adjetivo inofensivo. Estranhava a facilidade com que se dizia que o outro era um “idiot”. Isto, para mim, era pegar pesado.

Com o tempo percebi que o termo “idiot” não tem o mesmo peso e negatividade que tem no português. Da mesma forma a palavra “estupid”. Virou famosa a frase de James Carville em 1992, dirigida aos trabalhadores da campanha de Clinton.

Um dia, conversando com um executivo eu o ouvi, irado, chamar de looser a pessoa que ele estava detonando. Meio embasbacado com a expressão, pedi a ele que a refraseasse, para que eu a entendesse melhor e ele me disse: não há outra melhor “looser, looser, looser.”, reiterou enfaticamente.

Percebi que não tinha entendido o peso da expressão. Ao invés de pegar o sentido no original, estava traduzindo. Mais tarde vi duas pessoas discutindo. Quando uma delas se referiu à outra como looser, a ofendida partiu para as vias de fato.

Nestes dias ouvi a expressão aplicada ao Trump: ele perdeu a eleição, todas as ações judiciais que impetrou, o apoio de parte do seu partido, a presidência, a pose, o discurso, o Facebook, o Instagram, Twitter, o Parler, a votação do segundo impeachment, vai perder no Congresso, perdeu a casa onde morava porque despejado pelo voto, vai perder os holofotes e terá que enfrentar a enxurrada de ações, algumas criminais

Ele é um looser.

Sem dar o mesmo peso que a palavra tem no inglês, acho que a nosso Trump tupiniquim também é um colecionador de derrotas. Disse que montaria um ministério de notáveis e perdeu as estrelas da Justiça (Moro), da Saúde (Mandetta) e a outra (Guedes) até agora não mostrou a que veio. Se notáveis são o das Relações Exteriores, do Meio Ambiente, os três da Educação, o atual da Saúde, que me perdoe o idioma, não sei o que é notável. Só se ela se refere à notabilidade pelos desatinos que cometem.

Elencar as perdas sofridas no embate com o STF é fazer lista parecida à do supermercado, pela quantidade de itens. A investigação sobre a interferência na PF, a não nomeação do Ramagem, o depoimento oral no caso da PF, e por aí vai. Perdeu ao querer a possibilidade de reeleição do Alcolumbre. Viu seus apoiadores serem investigados e com as contas escrutinadas (Luciano Hang é um exemplo), a investigação do Gabinete do ódio está batendo à porta. Alguns bolsonaristas ativistas virtuais foram presos, o Godoy também, o Wassef está enrolado, o filho não explica as rachadinhas e ele não tem explicação para os depósitos na conta de esposa.

Na política, perdeu o apoio do Maia, não foi o responsável pela Reforma da Previdência, não conseguiu emplacar o Major Hugo como líder na Câmara, está tendo problemas para emplacar seu candidato à presidência da Câmara. Diante de tantas perdas teve que mudar o discurso, se aliar ao Centrão e fazer o fisiologismo que tanto atacou.

No caso das vacinas, perdeu todas. E quem vai salvar a lavoura será a vacina chinesa do Dória que ele execrou e disse que nunca a compraria. É a China, malhada por alguns ministros e pelos filhos, quem veio dar um oxigênio a um governo destrambelhado. Aquilo que era “vacina chinesa do Dória” agora “é vacina do Brasil e não de algum governador”. Uma coisa ele tem: muda de posição a cada troca de cueca, no que é imitado pelo Ministro da Saúde.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

EU SOU A VERDADE

Tanto quanto eu, a julgar pelas mensagens e e-mails que recebo, tem muito mais gente intoxicada com os “donos da verdade”. Este sentimento foi fertilizado pela reação do Donald Trump ao insucesso e derrota que sofreu. Na sua visão, no que pese todos quantos o aconselharam, o que é verdade é o que ele acredita.

A ele se aplica o ditado atribuído a Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler: “uma mentira repetida mil vezes se torna verdade”. De tanto repetir que a eleição foi fraudulenta e que a vitória lhe foi roubada, isto passou a ser verdade. O que estranha é que uns 20% acreditam piamente no que ele diz. O problema é que esta estratégia foi anunciada com antecedência, tentou-se provar a veracidade dela com factoides e insinuações de que mortos votaram, teve mais votos que eleitores, que os votos por correio eram uma forma de fraudar etc. Votos foram recontados, a justiça escrutinou tudo e sentenciou: não houve fraude!

Não foi o suficiente. Ele insuflou a horda que acredita em teorias da conspiração para invadir o Capitólio e tentar um golpe de Estado. Não deu certo. Ainda vai tentar alguma loucura, porque continuar acreditando em fraudes, depois de tudo o que se fez em averiguação, só pode ser loucura.

Ontem me mandaram um áudio de uma mulher não identificada, que teria ido a uma ginecologista não identificada, que lhe teria dito que a Coronavac tem elementos que permitem rastrear as pessoas e que isto vai habilitar a Inteligência Artificial a nos manipular. Para desatino maior, informa que quem patrocina isto é o Bill Gates. Quem enviou a mensagem dizia que por isto não tomaria a vacina. Perguntei à pessoa por que não usavam o paracetamol, a dipirona, que todo mundo toma como analgésico, para infiltrar o tal rastreador que permite a manipulação. Estou aguardando resposta.

Tenho chegado à conclusão de que é mais fácil lidar com o diferente do que com o ignorante. Contra a ignorância perde-se tempo usando argumentos. Como disse uma pessoa acerca de seu pai: “ele só ouve quem diz sim a tudo o que ele fala”.

Um dos líderes da invasão do Capitólio é Jake Angeli, também conhecido como Q-Shaman, ativista do grupo que divulga teorias conspiratórias, entre eles o QAnon. Este grupo dissemina e acredita que o Trump está salvando o mundo de uma rede internacional de pedofilia e um dos manifestantes no topo da escada do Capitólio empunhava um cartaz que afirmava que o Biden é pedófilo. A imprensa séria americana tem chamado a estes manifestantes de milicianos e terroristas domésticos.

Como brasileiros, não estamos livres desta praga. Tem gente disposta a ficar retuitando e disseminado estas teorias sem-pé-nem-cabeça, especialmente contra as vacinas para a Covid, mas nada falam dos feminicídios, das rachadinhas, não explicam cheques depositados na conta de esposa, afirmam ter havido fraude nas eleições com voto eletrônico, sem apresentar provas e documentos. Só ouvem o que querem ouvir.

Vivemos tempos de colher os frutos de uma educação onde precisava só preencher quadrinhos com um X, em múltipla escolha. Contrariando a premissa de que a explicação mais simples tem maior probabilidade de ser a correta, preferem optar pela mais extensa, porque lhes parece que a verdade é feita de muitos argumentos, mesmo que desconexos ou ilógicos.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

ÓCULOS PARA CEGOS

Guimarães Rosa, no seu conto Manuelzão e Miguelim, traz uma história paradigmática. Nele, o doutor José Lourenço apareceu na fazenda onde Miguilim vivia que o saudou e passou a fixá-lo com insistência, apertando os olhos, porque “era curto de vista”. O visitante foi até à casa onde o menino morava, conversou com a mãe e passou a fazer uns testes, mostrando a certa distância os dedos da mão e pedindo que dissesse quantos havia a cada novo gesto. Ele não enxergava. Foi quando o doutor tirou seus óculos e os colocou em Miguilim que ficou pasmo: era tudo novidade. As coisas ganharam luz, vida, cores, o que não conseguia ver agora apareciam à sua frente. Ele que nunca tinha visto um grão de areia, agora podia vê-los.

Miguilim começou a descrever as coisas que viu, as belezas nunca vistas. Saiu correndo e contou para todos quantos achou à sua frente. Quando voltou à sua casa, o doutor já tinha ido embora e Miguilim ficou profundamente triste. A experiência de ver se acabara.

A mãe disse que o doutor foi lá para as bandas dos caçadores, que voltaria. Se Miguilim quisesse, ele podia levá-lo para a cidade e fazer óculos para ele, entrava na escola e aprendia um ofício. O coração do menino disparava. Despediu-se de todos, com lágrimas nos olhos. Foi para uma nova vida para uma nova visão.

Digo que esta história é paradigmática porque ela é a história de muita gente curta de visão. Os óculos são o estudo, a leitura de bons livros, a leitura de notícias várias, a abertura da mente, a compreensão de que as coisas não se resumem a uma única causa, que os problemas complexos não se resolvem com chá de camomila, que as mudanças culturais tomam duas ou três décadas para acontecer.

O radicalismo, o fundamentalismo, o racismo, o sexismo, o machismo tem raízes fortes. Não acabam por passe de mágica, mas pelo constante e contínuo vigilar e trocar as informações mentais que se tem e trabalhar para mudar o que é conhecimento arquétipo e socializado. Há a necessidade de trocar a visão curta de um Miguilim por outra propiciada pelas novas lentes, pelo estudo, por ver coisas que a visão míope nunca permitiu.

Enquanto escrevo estas coisas não me sai da cabeça as notícias que li e ouvi ontem e esta madrugada sobre a resistência do Trump em aceitar a derrota. Para um sujeito de visão míope, que cresceu e montou um conglomerado de hotéis e campos de golf e que são questionados quanto à solidez da sua estrutura, o maior exemplar de Narciso que já, perder é algo acachapante. Ele nunca mostrou ou deu a entender que leu algum livro, que estudou além do básico (nos EUA o College) ou que aceita conselhos ou opiniões divergentes.

Ele perdeu excelente oportunidade de ganhar óculos para ver as coisas com mais detalhes e precisão, de perder a visão míope. Plagiando o poeta pantaneiro Manoel de Barros (“tudo o que não invento é falso”), o lema trumpiano é: “tudo o que não afirmo é falso”.

Lembrei-me da primeira leitura em voz alta, na frente da classe, que fiz na escola, assim que fui alfabetizado. Era a de um cego que também teve um médico que o operou e passou a ver, mas que continuou agindo como se cego continuasse a ser. A máxima era: “o pior cego é o que não quer ver”.

Marcos Inhauser