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quarta-feira, 26 de agosto de 2020

PACIFICADOR BALEADO

Há momentos em que penso que estamos nos tempos da barbárie. Questiono-me se a civilização deu passos à frente. Poderia citar muitos fatos que me trazem este questionamento, tanto no Brasil, como em outros países.

Para citar exemplos deste mês, o caso da menina estuprada pelo tio, que engravida, tem risco de vida se continuasse com a gravidez e a invasão da casa da avó por parte de “religiosos” tentando impedir o procedimento legal.

Não bastasse a barbárie da morte de George Floyd, asfixiado por um policial que ficou ajoelhado em cima do seu pescoço por nove minutos, temos agora a cena de dois policiais atirando pelas costas em um negro. Tal se deu com Jacob Blake, na cidade de Kenosha, Wisconsin.

O que mais choca é que ele tinha parado seu carro para apartar uma briga entre duas mulheres. Saiu em missão de pacificar e, sabe-se lá por que, a briga virou contra ele, não pelas mulheres, mas pelos policiais. Deixou os filhos no carro para realizar uma missão de paz e foi baleado nas costas, por policiais truculentos, imbuídos de um racismo estrutural. E foi baleado na frente dos três filhos que estavam no carro!

Nestas horas eu me pergunto como o texto da bem-aventurança pode ser aplicado, entendido, ou pode explicar esta situação: “Bem-aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus. Como o Jacob Blake e seus familiares podem entender, aceitar e ser consolados com a afirmação de que seu pai, covardemente baleado, pode ser chamado Filho de Deus?

Eles estão angustiados com a saúde do pai, levado em estado grave para o hospital. Eles estão chocados com a brutalidade de quem, se sentindo dono da verdade e da vida alheia, decide, à queima-roupa e pelas costas, atentar contra a vida daquele que os deixou no carro (em segurança, diria eu), para ir fazer um ato que é obediência ao mandamento bíblico: pacificar.

Como já ocorreu em outras situações semelhantes, o ato gerou uma onda de revolta, com mais violência gerada. Este paradoxo é intrigante: um ato de pacificar gera a violência policial que, por sua vez, gera a violência social. A pergunta que fica: é errado tentar ser pacificador em uma sociedade estruturalmente violenta?

Como ser pacificador no Brasil onde o discurso de violência vem de cima? Quando os que têm a incumbência constitucional de gerar a paz social, pregam o armamentismo? Como ser pacifista em uma nação onde a violência no campo gerou muitas mortes (Padre Jósimo, Chico Mendes e Dorothy Mae Stang, para citar só três), onde o ministro do Meio Ambiente é o maior agressor ambiental que se conhece hoje em dia? Como ser pacificador quando a polícia entra nas favelas em suposto confronto com marginais e mata, com balas perdidas ou dano lateral, crianças em suas casas?

O pacificador, além de sua tarefa imediata de gerar paz em situações de conflito, também tem o dom de desmascarar a violência. A pacificação é um processo com exigências radicais. Não se pode ser pacificador com medo, com meias palavras. Em certa medida, trabalhar pela paz é trazer a luta contra a violência estrutural.

Em nenhum momento Cristo disse que a vida cristã seria fácil. E não é para menos que, anunciando a paz, foi crucificado!

Marcos Inhauser

 

A CULPA AGRESSIVA

Normalmente experimentamos sentimento de culpa quando reconhecemos que somos a causa do infortúnio de outra pessoa. A teoria intrapsíquica afirma que as regras e valores morais internos que aprendemos e introjetamos desde a infância, quando violados por nós, nos leva a um sentimento de culpa. A culpa, então, é o resultado emocional de um conflito entre nossas regras e valores e nossos comportamentos ou omissões. Nessa visão, a culpa diz respeito ao sentimento de ter desobedecido aos próprios valores morais internos, mesmo sem agir ou compartilhar o sentimento com os outros. Isso pode causar uma expectativa de punição, expiação ou pedido de desculpas. A pessoa que se sente culpada tem a sensação de ser uma “pessoa má”.

Percebe-se que o sentimento de culpa se dá em razão de ações positivas cometidas, intencionais ou não, ou de ações omissivas, também intencionais ou não. A pessoa se sente culpada pelo que fez ou deixou de fazer e este sentimento o leva a várias opções possíveis, no sentido de amainar o sentimento que passa a corroê-lo.

O primeiro deles é reconhecer que errou ao fazer ou deixar de fazer e assumir este erro junto à pessoa afetada. Se isto já não mais é possível, pelo falecimento ou impossibilidade de encontrá-la, tal reconhecimento pode ser feito junto a terceiras pessoas, um confessor, por exemplo.

O segundo comportamento é encontrar motivos para o seu ato ou para a sua omissão. A pessoa buscará um sem-fim de razões para mostrar que o erro não foi intencional ou que não teve a dimensão que se que dar. É um mecanismo de fuga à responsabilidade.

O terceiro é culpar outros pelo seu erro positivo ou omissivo. Ele não é culpado porque alguém o fez errar ou se omitir, alguém não o informou, ou alguém fez algo que o impediu de agir corretamente. Santo Agostinho, em seu livro “Confissões” tem esta atitude ao dizer que “foi forçado a pecar”.

O quarto é quando a pessoa deixou de fazer ou fez algo e outra pessoa assumiu o papel e fez o que ela deveria ter feito. Há nisto um duplo sentimento: o do erro ao ter falhado e o da acusação sub-reptícia de alguém que assumiu o seu lugar fazendo o que ele não fez. A dimensão da culpa aliada ao sentimento de estar sendo acusado pela prontidão do outro em fazer o que se esperava que ele fizesse, leva a pessoa a denegrir as competências ou habilidades de quem o substituiu.

O mecanismo de achincalhar a pessoa que fez o que ele não fez é cruel e perde o sentido da ética e ultrapassa os limites da civilidade. Para não se sentir culpado e acusado, passa a acusar quem cobriu sua falha com acusações não comprovadas, com tentativas de diminuição das capacidades, habilidades e até mesmo desmerecendo os logros acadêmicos ou profissionais que a pessoa que o substituiu tem. A culpa passa a ser agressiva, dirigida a quem fez o que o agressor não fez.

Na teoria interpessoal, por sua vez, a culpa resulta da consciência de ter causado um dano injustificável a alguém, não ter se comportado de forma altruísta ou amorosa, resultando em comportamento egoísta, fruto da falta de empatia e compaixão, mesmo se tratando de pessoa supostamente amada. Aqui, o gatilho é a presença de uma pessoa em sofrimento ou necessidade, sendo injustamente penalizada pelos seus atos, não ajudando, desprezando ou, simplesmente, ignorando.

Aqui entra o auto-engano: a pessoa má não é quem deveria ser e não amou, mas quem no seu lugar amou e cuidou!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 12 de agosto de 2020

UMA ESTANTE DE LIVROS NAS COSTAS

Nove entre dez entrevistados na televisão, lives de especialistas ou vídeo de “otoridades” em algum assunto, tem uma biblioteca nas costas do indivíduo. Há algumas considerações que merecem ser feitas sobre este fato.

Esta é uma forma de mostrar aos que se dispõe a ouvi-lo ou para chamar a atenção dos que passam de relance, que a pessoa é uma pessoa letrada, com muitos livros lidos e vasto conhecimento na área em que pretende falar alguma coisa. Quanto mais livros o sujeito tiver para mostrar, mais autoridade, supostamente, ele tem. Há um deles, o Guga Chacra, que tem livros dos dois lados de sua cabeça, todos colocados para que se facilite a leitura dos títulos e, como deveria ser, relacionados a assuntos do Oriente Médio e mundo árabe. Tal se dá porque ele é, de fato, um especialista no assunto. O que me chama a atenção é a arrumação deles. Parece que estão ali para promover os livros e se assim for, deve ganhar ou livros grátis das editoras, ou algum cachê.

Um ministro do STF tem uma coleção da Enciclopédia Mirador nas suas costas. Ela só pode ser relíquia bibliográfica por ser tão antiga e desatualizada. Deveria estar no sebo! Há quem mostre uma biblioteca toda certinha, com os livros arrumados por tamanho e, parece, por cor também. As que vi pertencem a mulheres: Cristiana Lobo e Eliana Cantanhede. Há quem tenha uma biblioteca com livros em desalinho e meio que jogados ao léu (Jorge Pontual). Há jornalista que aparece para dar seu furo ou reportagem em frente a estantes que supostamente têm livros.

Recebi há algum tempo uma “live” de pessoa que conheço bem e que o último livro que leu foi para a última prova na Faculdade. Lá estava ele em frente a uma biblioteca que nunca vi na sua casa!

Outra coisa, relacionada a esta é a quantidade de “lives” e vídeos feitos por pregadores. Eles obedecem a dois parâmetros: biblioteca nas costas ou uma baita Bíblia que o pregador segura nas suas mãos. Parece dizer que, quanto maior for a Bíblia, mais autoridade espiritual ele tem. Ao segurá-la de forma meio descuidada, quer passar a ideia de que tem familiaridade com o livro, tal como fazia Billy Graham ao dobrar a sua, encostando a capa na contracapa.

Com a tecnologia do chroma key, podemos duvidar que a biblioteca às costas realmente está ali ou foi montagem de cena. Posso perfeitamente ir à biblioteca municipal ou da Universidade, gravar um vídeo das estantes e depois montar a cena. Eu me coloco na frente deles e os espectadores acharão que tenho uma enorme quantidade de livros e que sou letrado.

Uma coisa também me chama a atenção nestes dias de pandemias: é raro ver um dos epidemiologistas, infectologistas, virologistas aparecer com biblioteca nas suas costas. Preferem aparecer no laboratório, como se tivessem parado a pesquisa para dar a entrevista. Há nisto também um ranço ideológico (no sentido de busca de poder).

Como estamos na era em que qualquer analfabeto se acha especialista em alguma coisa ou em tudo (haja vista a profusão de comentários de quem mal sabe escrever que está nas redes sociais, gente que não aprendeu que na língua portuguesa se usa vírgulas e pontos finais), uma biblioteca nas costas dá uma sensação de “otoridade”. Mesmo que seja montagem!

Marcos Inhauser

 

quarta-feira, 5 de agosto de 2020

CONHECER-SE: UM DILEMA HISTÓRICO

Demócrito nasceu e viveu entre 460-370 a.C. Filósofo do período pré-socrático, foi o primeiro a formular a teoria atomista que afirmava que tudo é composto de átomos, partículas indivisíveis que diferem apenas pela forma, tamanho, posição e ordem. Não se conhece seus escritos completos, só alguns fragmentos, muitos deles através de citações de Aristóteles, quem era seu crítico.

Ele tem alguns conceitos universais (no sentido de que valiam para a sua época e para a nossa). No fragmento 72 ele diz: “desejar violentamente uma coisa é tornar-se cego para o demais”. A paixão desenfreada por algo ou por uma ideia é sinal de cegueira para outras verdades. O vida focada em um só assunto perde a dimensão e visão das demais. A pessoa passa a ter uma visão de tubo e os ouvidos se fecham para tudo o que não confirma o que crê.

O exagero de acreditar em algo mostra que, de alguma forma, o sujeito está fora de si ou que perdeu o senso de realidade. É um obstinado, cego para outras perspectivas e possibilidades, com a impossibilidade de enxergar-se. Acaba sendo ridículo.

O filósofo Karl Popper, filósofo da ciência, rejeitou as posições indutivistas clássicas propondo o falsificacionismo, porque, para ele, pelas ciências empíricas não se prova nada, mas se falsifica. Tudo deve ser examinado por experimentos decisivos. O que a experiência e as observações podem e fazem é encontrar provas da falsidade de uma teoria. Quando isto acontece, há que eliminá-la por ser falsa e buscar outra que explique o fenômeno em análise. Percebe-se assim que, para o obcecado pelas verdades que crê, não admite ser questionado e muito menos, que alguém prove a falsidade de seu posicionamento. Ele é a verdade e nunca admitirá que pode estar errado. Entra-se no surreal de que a mentira é “liberdade de expressão”.

Quem se conhece a si mesmo, sabe dos seus limites e não exagera na convicção de suas crenças, antes é alguém aberto ao diálogo, ao confronto, ao contraditório. Aceita que, mesmo que creia com toda a força dos argumentos que têm em mãos, pode ser que seu ponto de vista esteja errado ou seja falso. Isto é maturidade. Quem não se enxerga não vê o outro. Só aceita quem diz o que ele diz ou o que ele quer ouvir. O que pensa diferente é inimigo.

O sujeito maduro tem a capacidade de examinar seus próprios sentimentos, de ver-se desde fora de si mesmo, distanciar-se dos exageros que os sentimentos promovem e, assim, reduzir o risco da miopia obtusa que a extremada convicção lhe dá. Cabe aqui o provérbio bíblico: “quem confia no próprio coração é um insensato (28:26).

Em tempos de exacerbação das opiniões via redes sociais, onde cada um tem o poder de escrever e dar sua opinião sobre tudo, mesmo sobre coisas que nunca soube que existia ou que não é de sua área de conhecimento, percebe-se, seja pela ortografia, pela sintaxe ou pela lógica que se revelam ignorantes. No dizer do apóstolo Paulo: “Desviando-se algumas pessoas ..., perderam-se em loquacidade frívola, pretendendo passar por mestres ..., não compreendendo, todavia, nem o que dizem, nem os assuntos sobre os quais fazem ousadas asseverações.” (ITm 1:11).

Marcos Inhauser

 


quarta-feira, 29 de julho de 2020

TOLICE RENITENTE

No seu livro “Autoengano”, Eduardo Giannetti traz a seguinte afirmação; “Se o tolo persistisse em sua tolice ele se tornaria sábio” (pg 56). Citando Platão ele afirma que “todas as tentativas são arriscadas, e é verdadeiro o provérbio segundo o qual aquilo que vale a pena nunca é fácil (República, 497 d). Ao comentar o assunto ele afirma que a atividade humana é como uma loteria, onde a aposta precisa ser paga na entrada, o que leva a melhor parte das esperanças e energias. No entanto, as chances de sucesso são mínimas e para cada ganhador há uma multidão de perdedores”.

Isto assim é, continua Giannetti, porque a capacidade humana de autocontrole, perseverança e autoconhecimento é limitada. O saber não é condição suficiente para o fazer. Há os que, mesmo sabendo muito e ensinando, diante de uma tarefa que exige tenacidade e persistência, desistem ao enfrentar os primeiros embates e justifica sua falta de competência em fazer, acusando e atirando pedras em tudo e todos, como se eles fossem os culpados da sua incompetência. Heráclito dizia que “a natureza ama esconder-se” (frag. 123).

Minha sogra tinha um ditado: “cada ladrão julga por sua condição”. Sem saber, ela afirmava algo que filósofos clássicos já haviam dito. Vejo no outro aquilo que não quero ver em mim, e como não tenho coragem de afirmar que tenho os erros que aponto no outro, é mais fácil projetar e acusar os outros ao invés de me denunciar. Para que não se descubra o seu ignominioso interior, o acusador precisa que os outros creiam na sua credibilidade, que é honesto nas intenções que tem. A máxima por trás disto é o que Protágoras dizia: “qualquer um que não professe ser justo só pode estar louco” (323 b). Para tanto, via de regra, fazem autoelogios: “a minha honestidade não permite”, “tenho um currículo a zelar”, “o tempo mostrará que estou com a razão”. A questão, nestes casos, é a hermenêutica por trás das palavras para descobrir as mentiras que o acusador profere para acobertar o que nele existe.

Como humanos, o maior erro seria nunca errar. Falíveis, erramos desde a fonte da humanidade. No que pese as afirmações dos autoenganados honestos e impolutos, a sapiência está em reconhecer que todos, imperfeitos que somos, não temos autoridade para atirar pedras, por melhor que sejam as razões. O acusar o outro como responsável pelas minhas incapacidades é mecanismo de defesa dos tolos.

Bernstein, no seu livro “Against the Gods” (pg 202) cita um anônimo: “A informação que se tem não é a informação que se quer. A informação que se quer não é a informação da qual se precisa. A informação da qual se precisa não é a que se pode obter. A informação que se pode obter custa mais do que se quer pagar”. Não sei por que, mas me vem à cabeça as mentiras e desistência de um obstinado perdedor, que na loteria da vida ganhou uma presidência e mostrou sua incompetência no trato da pandemia e acusa STF, governadores e prefeitos pelo descalabro.

Para os tolos e perdedores, a busca da informação necessária é tarefa tão cara que eles não estão dispostos a pagar, porque a incompetência inata não lhes dá a resiliência para continuar até o fim e obter o prêmio da vitória. Ao ver o tamanho da estrada desiste da carreira.

A desistência é típica dos frágeis, dos tolos, dos perdedores.

Marcos Inhauser

VERDADE E VERDADES

Mencionei na coluna passada a parresía, que é a virtude de dizer a verdade. Outra anotação sobre o tema está no diálogo entre Sólon e Pisístrato. Sólon afirma sobre Pisístrato: “se o soberano se apresenta exercendo um poder militar, ameaçando pela força armada a outros cidadãos, é normal que que os cidadãos [em troca] cheguem armados”. Se o tema é a parresía, e o governante vem armado de mentiras, é normal que os cidadãos de bem o combatam com investigações e verdades. A certa altura Sólon afirma; “sou mais sábio do que os que não compreenderam os maus desígnios de Pisístrato, e sou mais corajoso dos que o que os conhecem e se calam por terem medo” (Foucault, M. Coragem da Verdade, pg 66).

Sólon desnuda assim que a parresía diante do governo mentiroso é arriscada e pode causar a morte, seja ela física, seja ela moral pela execração da indústria de mentiras que tal governante deve ter. “Quem quiser dizer a verdade no jogo de um regime democrático pode se expor efetivamente a morrer” (Idem, pg 67-68).

Sócrates, na Assembleia de Arginusas, declara: “eu votei contra vosso desejo!”. “Eu estimava que meu dever era enfrentar o perigo com a lei e a justiça, em vez de me associar a vós em vossa vontade de injustiça, por temer prisão e morte” (idem, pg 68). O medo faz a consciência calar-se. Mas esta não é a única razão: o desejo do poder é o que move a muitos para bajular os poderosos de plantão. Com Sócrates aprendemos que a prática de dizer-a-verdade é diferente da que ocorre na cena política. Para ele, mesmo o oráculo proferido pelos deuses deve passar por um elégkhein, palavra grega para “fazer recriminações, objeções, questionar, submeter alguém a um interrogatório, opor-se ao que alguém disse para saber que o que disse se confirma ou não” (idem, pg 70).

Há algumas coisas que pastores e líderes religiosos podem aprender com Sócrates: não dar ouvidos às palavras proferidas, por quem quer que seja, e que se pretende ser a Palavra de Deus via boca de algum “iluminado”. Tudo, absolutamente tudo o que lhe for dito, deve passar pela elégkhein, que é o processo de saber se o que se arvora como parresía é, de fato, a verdade.

Neste raciocínio, o pretenso líder que se arvora como parresiasta e é, ao mesmo tempo, aliado dos poderosos, tem toda a chance de ser um embusteiro, porque a parresía é oposta à democracia, tal como a concebemos e vivemos. Daí que, se levada a lógica ao paroxismo, teremos que afirmar que um político religioso, especialmente o cristão, é uma excrescência. Ou será religioso e, se espera, comprometido com a verdade, ou será político aliado à trama de mentiras que norteia os poderosos. Se coloca os pés nos dois barcos, ou perderá a autoridade religiosa ou se mancomunará com as tramas do poder.

Na necessidade da parresía apareceram os profetas. Nenhum deles esteve associado aos reis, antes, pelo contrário, suas alocuções denunciavam os desmandos, injustiças, mortes e exploração que praticavam. Não é possível ser profeta e político partidário, mesmo porque, como ser social, todos somos políticos, já dizia Aristóteles. A política da parresía dever ser a do cristão, e este engloba as denúncias das injustiças, das explorações, do racismo, da xenofobia, da carga tributária escorchante, da corrupção, do caixa dois, das meias verdades, do negacionismo.

Sinto que faltam parresiastas no Brasil!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 15 de julho de 2020

É FAKE?


Que me perdoem os poucos leitores que tenho, mas fui treinado por meu pai, por minha professora de filosofia e pelas leituras de Nassim Taleb e Michel Foucault a duvidar de todas as informações que me chegam, especialmente as relacionadas aos políticos.
Foucault, nas suas últimas aulas, tratava da parresía (falar a verdade) na democracia, algo incomum. Citando Platão e Isócrates diz que, em geral, as pessoas querem ouvir os que “falam no sentido dos seus desejos” e que “a democracia não é o lugar privilegiado da parresía ... e [onde] o exercício da parresía é mais difícil” (A Coragem da Verdade, Pg. 51). Com o Nassim Taleb refinei algo que já tinha: tudo o que tem aprovação da maioria, é senso comum, best seller, tem grande chance de ser engodo.
Vivemos uma democracia que elegeu um presidente que, à medida que as investigações avançam e o Facebook revela, se sabe que usou de desinformação, fake News e robôs para gerar clima antagônico ao oponente e favorável à sua candidatura. Ao fazer isto e polarizar a eleição entre petismo e conservadorismo, o fez por meios maquiavélicos e nada republicanos. Sabe-se que o uso de desinformação, postagens com mensagem não comprovadas, dados incorretos, são a tônica deste que não é um parresiasta. Até um site dedicado a contar as informações equivocadas foi montado (aosfatos.org).
Quero trazer uma inquietação e não uma afirmação. Ele fez alguns testes para saber se teve a Covid-19. Disse que os exames deram negativo. O jornal Estadão conseguiu na Justiça, depois de várias chicanas da parte do requerido, que os exames fossem apresentados e o foram com pseudônimos e justificou-se que assim era por razões de segurança. Neste tempo ele alardeou que era uma gripezinha, receitou a milagrosa hidroxicloroquina, mesmo não sendo médico e contra o posicionamento da comunidade científica, afirmou mais de uma vez que havia certa histeria na veiculação jornalística, tentou maquiar os números de infectados e mortos, brigou com a OMS.
Mais recentemente ele fez um novo teste. Para surpresa geral, ele vem a público e diz que está com Covid-19, apresenta o teste positivo e agora com seu nome. Mais: faz uma entrevista coletiva, retira a máscara para anunciar o fato e que estava muito bem. No outro dia aparece mais de uma vez tomando a milagrosa pílula de hidroxicloroquina e afirmando que estava dando resultados e que estava se sentindo bem.
Estranhei. Todas as pessoas que estiveram com ele nos dias anteriores, quando testados, deram negativo. O Embaixador dos EUA e esposa, as pessoas que com ele viajaram a Florianópolis, os ministros, filho e assessores. Até a esposa testou negativo. Ele é um fenômeno! Não infectou ninguém, apesar do seu descuido com os protocolos que seu governo estabeleceu para todos (menos ele!).
Minha pergunta: será que esta revelação não é fake? Será que ele não veio dizer que estava com a Covid-19 para mostrar que, tal como disse, é uma gripezinha? Será que o remédio maravilhoso não está enchendo os bolsos de quem o fabrica? Como pôde não ter infectado a esposa e o filho? Como este evento da “gripezinha” ajuda a alavancar a candidatura em 2022? Há alguma relação entre a prisão do Queiroz, o emudecimento estranho e a gripezinha? Há alguma relação entre o cancelamento de contas da família no Facebook e esta Covid-19, como forma de criar um boi de piranha?
O tempo dirá. Alguém vai acabar dando com a língua nos dentes e ficaremos sabendo a verdade.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 8 de julho de 2020

ENGANOS SEQUENCIAIS


Lá nos anos 60, venderam-me a ideia de que o problema do país, que era periferia no mundo da economia mundial, era a dependência do centro e que a solução era o socialismo ou comunismo, dependendo de quem me pregava. Do outro lado, leitor assíduo do Estadão e Jornal da Tarde que me acompanharam durante a adolescência, me era vendida a ideia de que o capitalismo era a solução de todos os males. Soube que as marchas da família e a revolução dos militares era a solução para o Brasil entrar no primeiro mundo. Depois, pelo Pasquim, lia a mensagem de crítica aos militares e à ditadura.
Mais tarde, me venderam a ideia de que as multinacionais eram a desgraça deste país e que o jeito de combatê-las era criando as nossas próprias super-empresas. Lá veio a Petrobrás que se agigantou e foi uma das primeiras, no que foi seguida pela Vale e as grandes siderurgias.
Passado algum tempo, veio a onda da dívida externa, que asfixiava nossa vida e que o jeito era decretar a moratória e o perdão incondicional da dívida. Aplaudi o Sarney e fui às ruas pela ideia do Ano Jubileu, ao estilo judaico de passar a régua e recomeçar do zero.
Aí veio o Collor que vendeu a ideia de que o problema do Brasil eram os marajás e os funcionários públicos. Deu no que deu. Veio o FHC e disse que o problema eram as estatais. Vendeu tudo e o dinheiro sumiu, e ainda por cima enfiou outro engodo: o problema estava nas aposentadorias e no INSS. Veio o Lula, mexeu nas aposentadorias, pegou uma maré internacional super-boa, aumentou a carga tributária na relação com o PIB e ainda veio com o discurso de que a CPMF era necessária e que não se cortam quarenta bilhões de uma hora para outra.  Teve um mandato e meio para se preparar e não se preparou para a redução e/ou corte da CPMF.
Veio o Temer e insistiu na Reforma da Previdência para a solução dos males brasileiros. Não conseguiu porque foi flagrado em outro mal brasileiro: a corrupção via gravação de conversas nada republicanas com empresário da JBS.
Veio o atual com seu Posto Ipiranga. Prometeu o paraíso em curto espaço de tempo. Fala fácil e metáforas afinadas, conseguiu fazer a reforma da previdência, não por empenho do chefe, mas por trabalho do César Maia. Agora ele retorna no pós-pandemia prometendo privatizar quase tudo como solução para o reaquecimento da economia. Fala em privatizar os Correios, o Banco do Brasil, a Telebrás e outras coisas mais.
Não acredito nesta arenga! Já venderam a Vale, as teles estaduais, os licenciamentos para uso das bandas da telefonia celular, e o dinheiro sumiu, ninguém sabe, ninguém viu.
De minha parte, não acredito em mais nada a não ser na história, analisada depois de alguns anos dos fatos e assim mesmo com os filtros e condicionantes dos instrumentos de análise. E desta experiência me sobram o ceticismo, a aversão à classe política e uma azia incurável a discurso político-partidário. De uma coisa sei: não confio no Posto Ipiranga e nem no chefe dele.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 1 de julho de 2020

A "CONVERSÃO” DE CONSTANTINO


História ou "lenda", conta-se que Constantino viu um sinal no céu: uma cruz com as insígnias "com este sinal você vencerá". Constantino estava fraquejando nas suas crenças no Panteão Romano e inclinado a acreditar em um só Deus. Por causa da visão a cruz foi colocada nos escudos. Constantino venceu a batalha, como prometia a visão, e ele passou a se achar o escolhido por Deus.
Constantino tornou-se um enigma para os cristãos e historiadores. Foi conversão ou movimento político para colocar os cristãos sob sua influência? Muitos acreditam na inteligência de Constantino e os primeiros anabatistas acreditavam que a conversão era fake. Com ele a igreja se afastou de sua origem simples. A mãe de Constantino, Helena, "se converteu" pouco depois que o marido a deixou.
Aliado às vitórias que obteve após a visão e o sinal da cruz colocado nos escudos, algo aconteceu a Constantino. A melhor das hipóteses é que ele se converteu, e a pior é que ele tomou uma decisão política.
Ele viveu cercado por filósofos, sábios e pagãos. Em raras ocasiões, ele se conformava às exigências da adoração cristã. Suas cartas aos bispos mostram quão pouco as diferenças teológicas o interessavam. Os bispos foram tratados por ele como assistentes políticos. Os concílios eclesiásticos foram convocados e presididos pelo imperador. Para ele, o cristianismo significava um meio, não um fim.
Ele usou a linguagem monoteísta que qualquer pessoa aceita. Durante a primeira parte de sua conversão, ele participou do cerimonial exigido como Pontifex Maximus; mas os templos pagãos foram restaurados, ele usou os ritos cristãos, assim como os ritos pagãos, usou fórmulas mágicas para proteger as plantações e curar doenças.
Ocorreram mudanças: os símbolos pagãos desapareciam; os bispos tinham maior poder em suas comunidades e localidades; as igrejas eram isentas de impostos; houve legalização e direito de posse; a propriedade dos mártires poderia pertencer à igreja sem fazer inventário; templos foram construídos com dinheiro público; a nova capital Constantinopla foi construída por Constantino para ser a nova sede do império e da Igreja; a proibição do culto às imagens; as seitas cristãs começaram a sofrer perseguição.
Muitos ficaram felizes com as mudanças, vendo a mão de Deus. Outros tinham preocupações pessoais específicas ligadas a heresias que grassavam pelas igrejas. Elas não eram vistas pelo imperador como assuntos religiosos, mas como ameaça ao império.
Percebe-se que usar a religião para realização de projetos pessoais de poder é coisa antiga. Outro já usaram, tanto na Antiguidade como na Modernidade. À medida que a população cristã cresce em um país, candidatos “evangélicos” aparecem. Que o diga a Guatemala.
A ingenuidade de grande parcela do segmento religioso acredita que, porque o candidato usa um versículo da Bíblia como lema de campanha, ou participa de alguns cultos, se deixa batizar ou se casou com uma membro de igreja batista, ele tem a chancela do divino sobre sua proposta. Outros, pretensos líderes evangélicos que detém algumas horas de programação televisiva pagas com o suor alheio, precisando que suas dívidas fiscais milionárias sejam perdoadas por uma canetada do presidente-evangélico, ficam babando ovos à sua volta.
O evangelho já alerta quem usa de trechos do evangelho para se eleger: “Nem todo o que me diz: Senhor, Senhor! Entrará no reino dos céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai, que está nos céus.” Promover o armamentismo, mentir repetidas vezes, ofender, desprezar os 58.000 mortos não é ser cristão, ainda que diga Senhor, Senhor!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 24 de junho de 2020

ORE PELAS AUTORIDADES!


Já recebi um monte de e-mails e mensagens privadas e públicas me criticando por fazer críticas aos governantes. Estas mensagens não têm cor ideológica: recebia no tempo do Lula, da Dilma do Temer e agora com o Bolsonaro. 

O interessante é que estas recomendações me são enviadas por quem, sendo apoiador do governante de plantão, se sentiu ofendido. Via de regra, as exortações vêm acompanhadas do conselho de que deveria usar do espaço da coluna para evangelizar e não me meter em política.

Quero me deter no conselho de que devo orar pelas autoridades. Se a memória não me falha, não encontro em nenhum dos profetas do Antigo Testamento um deles em oração pelos reis do seu tempo. Nem mesmo o impoluto Daniel! Antes, pelo contrário, encontro uma montanha de sermões e oráculos mostrando os pecados dos reis que praticavam injustiças e oprimiam os pobres, viúvas, órfãos e estrangeiros.

Também não encontro nos evangelhos sinóticos nenhuma menção a uma oração específica de Jesus, ou uma recomendação dEle aos Seus discípulos para que orassem pelos invasores de Israel, os romanos. Olhando para o Evangelho de João, o mesmo posso afirmar. Nem mesmo no sermão de despedida há qualquer alusão aos governantes e a necessidade de orar por eles. Não há nada no Sermão da Montanha, no Sermão das Dores, nem nas parábolas ou milagres.

O que se tem na Bíblia são as recomendações paulinas: “Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade”. (ITm 2:1,2) e ainda "porque não há autoridade que não proceda de Deus; e as autoridades que existem foram por ele instituídas" (Rm 13:1). A questão é saber o que Paulo entende por autoridade.

No mesmo contexto em que pede as orações, ele afirma: “quando as autoridades cumprem os seus deveres, elas estão a serviço de Deus” (13:6). Resumindo: é autoridade aquela que cumpre com seus deveres. Quais deveres? “Porque as autoridades estão a serviço de Deus para o bem. Elas estão a serviço de Deus e trazem o castigo dele sobre os que fazem o mal”. Elas, em outras palavras, cumprem com o dever de promover a paz, a vida, a dignidade humana, a justiça etc.

Quando a “autoridade” promove dissensões, conflitos, impede a aplicação das leis, protege os mais chegados e ofende os que se lhe opõem, interfere nas instâncias que não lhe compete, se nega a ver a realidade dos fatos, menospreza as mortes, faz críticas contundentes, mas sempre genéricas sem especificar ou pessoalizar, ela pode ser tudo, menos autoridade.

Há aqui uma distinção que merece ser feita. Os votos podem dar a uma pessoa uma posição de vereador, prefeito, governador, deputado, senador ou presidente. Isto não implica que, automaticamente tenha autoridade. Ele tem o poder, que é diferente da autoridade. Esta se constrói com o exemplo, com as decisões sábias, com afirmativas prudentes e pacificadoras, com a construção de pontes de diálogo, com decisões imparciais, mesmo que afete a vida do filhos. O uso do poder pode levar a esconder quem não pode ficar à mercê da imprensa. Autoridade é dizer onde se encontram os bandidos e encaminhá-los para o juízo justo e imparcial.

Tenho disposição de orar por quem é autoridade e não por quem está investido de poder sem a autoridade que deveria ter.

Marcos Inhauser