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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

PALAVRA DE DEUS OU HUMANA?

A posição clássica e ortodoxa é afirmar que “toda a Escritura é inspirada por Deus e útil para o ensino...”. Por “toda a Escritura” os protestantes e os que neles tem alguma raiz histórica e/ou teológica (batistas, metodistas, pentecostais) vão afirmar tratar-se de todos os livros que fazem parte do cânon bíblico aceito pelas igrejas chamadas de “evangélicas”. Já para os católicos, para os que creem na inspiração plenária das Escrituras, muito provavelmente acrescentarão os livros chamados de deutero-canônicos.
Há, no entanto, um senão nesta postura. Trata-se dos livros dos Salmos e Lamentações de Jeremias. A análise criteriosa deles nos fará perceber que, antes de serem palavra de Deus dirigida aos homens (tal como ocorre nos profetas, por exemplo), trata-se de palavra humana dirigida a Deus.
A grande maioria dos Salmos são orações humanas dirigidas a Deus na forma de pedido, lamentação, louvor, imprecação, etc. Não são strictu sensu Palavra de Deus, mas palavra para Deus, ainda que haja trechos em que explicitamente se afirma ser Deus falando. Da mesma forma as Lamentações de Jeremias. Trata-se de uma coleção de orações, lamentos, falas de arrependimento, que nascem da boca do profeta e são dirigidas a Deus.
A tomada de consciência deste fator é de profunda importância, porque muitos há que, lendo algo que era uma aspiração ou desejo do orador, o transformam em promessa de Deus. Cito o Salmo 23: “O SENHOR é o meu pastor; nada me faltará. Ele me faz repousar em pastos verdejantes. Leva-me para junto das águas de descanso; refrigera-me a alma. Guia-me pelas veredas da justiça por amor do seu nome. Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam. Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unges-me a cabeça com óleo; o meu cálice transborda. Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha vida; e habitarei na Casa do SENHOR para todo o sempre.”
Note-se que não há nele uma única menção a algo que Deus fala ou promete, antes é a fala do salmista. É uma oração de confiança na provisão e cuidado divinos, mas não é promessa de Deus de que ele fará o que ali está escrito. É um desejo humano e não uma promessa divina.
De igual forma se deve tomar o Salmo 37. Não se trata de promessas, mas de aspiração, de confiança. Neste caso, muito mais de exortação à confiança no Senhor: “Não te indignes por causa dos malfeitores, nem tenhas inveja dos que praticam a iniquidade. Pois eles dentro em breve definharão como a relva e murcharão como a erva verde. Confia no SENHOR e faze o bem; habita na terra e alimenta-te da verdade. Agrada-te do SENHOR, e ele satisfará os desejos do teu coração. Entrega o teu caminho ao SENHOR, confia nele, e o mais ele fará. Fará sobressair a tua justiça como a luz e o teu direito, como o sol ao meio-dia. Descansa no SENHOR e espera nele, não te irrites por causa do homem que prospera em seu caminho, por causa do que leva a cabo os seus maus desígnios. Deixa a ira, abandona o furor; não te impacientes; certamente, isso acabará mal. Porque os malfeitores serão exterminados, mas os que esperam no SENHOR.”
Por não perceberem isto, muitos há que prometem o que Deus não prometeu. Conheço muita gente que teve o Senhor como seu pastor, mas que passou por dificuldades e não teve pastos verdejantes e nem água tranquila. Outros que confiaram no Senhor e a Ele se entregaram e nem por isto todos os seus desejos foram satisfeitos.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

A TEOLOGIA DOS SEM-PODER

Quando se olha para os textos bíblicos que compõem o Antigo Testamento, pode-se fazê-lo de duas óticas: a tradicionalista e a instrumentalizada. Pela primeira, nos impingem premissas que a tradição repete até que pareça ser verdade. Exemplo disto é afirmar que os cinco primeiros livros da Bíblia, o Pentateuco, foram escritos por Moisés; que Isaías pertencia à corte; que a maior parte dos Salmos foram escritos pelo rei Davi, que Habacuque era sacerdote; Samuel é o autor dos livros a ele atribuídos, etc. Percebe-se uma nítida tendência de atribuir a autoria dos textos a personalidades do mundo antigo, gente ligada à corte (Moisés, Davi e Isaías), ou ao templo (Habacuque e Samuel).
A leitura instrumentalizada pelas descobertas arqueológicas, pelos fragmentos de escritos tanto em cerâmicas como pedras e papiros, desenhos feitos em cavernas ou nos palácios, a história comparada, a análise dos estilos e o vocabulário empregado nos escritos vários, mostram que a autoria dos textos bíblicos é bem mais complicada e difícil de se precisar. Já perguntei a muita gente que defende a autoria mosaica do pentateuco como poderia ter Moisés escrito em hebraico lá pelo século XIII aC, se os mais antigos textos com alguma palavra que talvez se possa atribuir ao hebraico são datadas no século X? Teria ele escrito em uma língua ainda inexistente? Um dos defensores, diante da pergunta, me respondeu que o “Espírito Santo o capacitou com o dom de uma língua que um dia apareceria”. Por que não se atribui nenhum trecho à autoria de uma mulher, mesmo que se tenha o cântico de Rebeca? Poderia um homem escrever com a fineza e a qualidade dos sentimentos femininos que estão presentes na história de Sara e Hagar e especialmente no encontro desta última com um anjo que a manda de volta para a casa de Abraão?
Como pôde Davi escrever tantos salmos para serem cantados no templo se em seu tempo ele não existia e, mesmo que quisesse construí-lo, foi seu filho, Salomão, que o construiu? Como podia ter dados ordens para se cantar com a melodia tal ou ao som de oitava, se o serviço religioso foi estabelecido mais tarde?
Quando se examina com mais imparcialidade e menos fervor religioso pré-concebido, percebe-se que o Antigo Testamento é uma coletânea de textos, escrito por uma multidão de autores que transmitiram o que ouviram e viram milhares de vezes, ao ponto de se tornar um texto de produção coletiva. A teologia do Antigo Testamento foi obra de um trabalho comunitário, de uma hermenêutica nacional, contando e recontando suas histórias e adaptando-as a cada momento que viviam. A fixação por escrito dos relatos orais se deu tardiamente. Exemplo disto é o livro de Jó, hoje reconhecida por muitos como obra teatral e não relato histórico sobre um personagem real. Em Jó estamos todos os que sofremos, que perdemos bens e família, que fomos falsamente consolados pelos amigos, que fomos acusados por quem nos dizia que nos queria ajudar.
Pela quantidade de denúncias que os textos fazem dos governantes e sacerdotes, da corrupção reinante nos juízos que exploravam e tomavam as propriedades aos mais pobres, pode-se concluir, com grande margem de acerto, que os que transmitiam oralmente as mensagens, especialmente as proféticas, e quem as redigiu, não era gente da corte, do templo ou dos tribunais. Era gente que estava sofrendo as agruras e que via nas mensagens a sua voz e angústia expressadas.
Tudo leva a crer que a teologia do Antigo Testamento é a feita pelos sem-poder, sem-notoriedade, gente sofrida, explorada, escravizada. Por isto, e com propriedade, é que se diz que a Bíblia é a memória dos pobres.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

QUEM VOS FASCINOU?

O apóstolo Paulo fez três viagens missionárias e, ao que tudo indica e os estudiosos apontam, visitou a região da Galácia nas três viagens. Definir os limites de tal região é algo que tem suscitado controvérsias e não tenho aqui espaço para isto. O que se sabe é que, na região da Galácia, especialmente nas cidades de Icônio, Listra e Derbe, ele teve atuação que marcou a sua forma de entender o evangelho e nelas estabeleceu comunidades cristãs.
Tudo indica que os Gálatas praticavam uma forma de politeísmo romano-céltico, comum em outras terras célticas e ali Paulo pregou o seu evangelho da graça, livre dos preceitos legalistas dos judaizantes ou das religiões de mérito, onde o fiel recebe segundo suas ações. Dá-me a impressão que Paulo se dedicou de corpo e alma a esta tarefa e acreditou piamente que os gálatas tinham entendido o evangelho da graça e que viveriam pela graça.
No entanto, na carta que escreve às igrejas, percebe-se um tom de frustração e indignação. Em nenhuma outra missiva ele foi tão duro e contundente quanto o foi ao escrever a estas igrejas. O texto, no seu início, tem uma advertência dura e defesa clara do evangelho de Cristo. Nota-se uma brusca ruptura entre a saudação inicial (Gl 1,5) e o texto seguinte (Gl 1,6) que mostra o estado de humor do autor e sua decepção com os gálatas. Ela difere das outras cartas onde, à saudação inicial, segue-se ação de graças e elogios. Tal era sua indignação e certeza do que lhes havia pregado que afirma: “... ainda que nós ou mesmo um anjo vindo do céu vos pregue evangelho que vá além do que vos temos pregado, seja anátema. ... se alguém vos prega evangelho que vá além daquele que recebestes, seja anátema. ... Faço-vos, porém, ... que o evangelho por mim anunciado não é segundo o homem, porque eu não o recebi, nem o aprendi de homem algum, mas mediante revelação de Jesus Cristo.”
Dada a seriedade e a certeza do que havia pregado, dada a esperança de que a graça prosperaria no seio destas comunidades, Paulo se decepciona amargamente e escreve: “Ó gálatas insensatos! Quem vos fascinou a vós outros, ante cujos olhos foi Jesus Cristo exposto como crucificado? Quero apenas saber isto de vós: recebestes o Espírito pelas obras da lei ou pela pregação da fé? Sois assim insensatos que, tendo começado no Espírito, estejais, agora, vos aperfeiçoando na carne?”
Esta carta me leva constantemente à pergunta: por que é tão difícil para os cristãos viver a graça? Por que, mesmo sendo instruídos nela, preferem, pregadores de méritos, do Deus que dá segundo o seu dízimo, que prometem o milagre, a cura, a posse, como se senhores de Deus fossem, dando-lhe ordens? Por que é mais fácil acreditar que foi a fé que imaginam ter o que causou a benção, do que acreditar que a dádiva foi presente imerecido?
Por que, pessoas que viveram certo tempo em uma comunidade onde a graça é ensinada, acreditam que seu filho, genro, marido, vizinho, amigo só se converterão se forem para outra igreja, onde a “des-graça” é pregada, onde a salvação vem pela obediência, e a “graça” exige a aceitação de uma decisão?
Por que pregar a graça é cair em desgraça diante dos pregadores de milagres e arrecadadores contumazes? Por que pregar a graça é ser acusado de incentivar a licenciosidade e o anarquismo religioso?
Na Sua infinita graça, Deus permitiu que houvesse no Novo Testamento uma carta para nos alertar que os pregadores de certezas e de recompensas segundo as boas ações devem ser anatematizados, amaldiçoados! Não sou eu quem o diz. Reclamem com o apóstolo Paulo e com o Espírito Santo!

Marcos Inhauser

quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

DOIS CAMINHOS

No emaranhado das teologias, com tantas interpretações, não é fácil entender a essência dos posicionamentos. No desejo de explicitar as coisas, apresento este esboço, resumindo as teologias a duas linhas fundamentais: a teologia do mérito e a da graça.
A do mérito também pode ser descrita como sinérgica ou da justiça retributiva. A palavra “sinérgica” vem do grego “syn”+”erga” = trabalho conjunto. Esta teologia trabalha com o conceito do mérito: a pessoa recebe de Deus o que ela merece. Se praticar o bem, recebe a benção. Se praticar o mal, recebe de Deus o castigo.
Frases características desta linha de pensar são: “Se sou fiel no dízimo, Deus vai aumentar meu salário”; “se sou fiel, não vou ficar doente”; “Deus levou em conta a minha fé”; “Deus me curou porque minha fé é muito grande”; “Deus me deu o emprego porque jejuei três dias”; “aquele que é fiel, praga nenhuma o atingira´”.
As consequências lógicas e práticas deste pensamento é que Deus não é onipotente porque obrigado a retribuir as ações humanas. Deus passa a ser previsível: só responde às ações humanas. Por consequência, Deus pode ser manipulado, porque se consegue que Ele atue em retribuição às ações boas ou más. A salvação não depende de Deus, nem de Cristo, mas das obras feitas para merecê-la, deixando de ser dádiva ou presente para ser pagamento pelo comportamento exemplar que se teve. O juízo final será a pesagem de ações boas e más e, dependendo do resultado desta balança, vai-se para o céu ou o inferno. Como juiz, Deus sentencia cada um de acordo com suas obras. Assim, deixa de ser salvador e se transforma em juiz, deixa de ser amor e passa a ser justiça.
Ela promove o egoísmo: “eu som bom e por isto Deus me abençoa”. Promove a competição e a jactância: “orei tantas horas”; “oro todos os dias, três vezes ao dia”; “li X vezes a Bíblia inteira”; “nunca faltei a um trabalho da igreja”; “Deus vai me responder, porque acredito muito nEle, minha fé é muito grande”. Os cultos se transformam em palcos para a atuação de narcisos: gente que vai à igreja para mostrar quão bons eles são. Ávidos para fazer um solo, orar em voz alta, dar testemunho, contar uma benção. Cacarejam o quanto Deus os está abençoando porque são merecedores. Fazem um rosário de “testemunhos”, cada qual querendo mostrar que é mais merecedor das bênçãos de Deus.
A outra teologia é a da graça que é o agir espontâneo de Deus, aquilo que Ele faz sem que nada o motive ou obrigue a fazê-lo. A graça é o agir surpreendente de Deus, porque nunca previsível: nunca ninguém poderá dizer que a graça vai se manifestar! Ela está definida no texto de João: o vento sopra, não sabes de onde vem, nem para onde vai. A graça não pede licença, nem retribuição ou mesmo um “obrigado”. A graça atropela! Faz mais do que imaginamos ou pedimos! Ela arregaça com os parâmetros da justiça humana, porque ilógica! A graça não precisa de “estrelas televisivas do mundo gospel” para se manifestar, ainda que, se quiser, pode usá-las! Não há poço tão profundo que a graça não possa alcançar! Não há trevas tão escuras que a graça não ilumine!
A graça não é resposta às orações feitas. A graça vem de onde menos se espera! Muda o caos em ordem, a briga em harmonia, a crise me abundância! A graça tapa a boca de pregadores presunçosos! Destrona os que se acham porta-vozes de Deus! Ela exalta o humilde, o órfão, a viúva, o enfermo! A graça visita leitos de doentes terminais!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

ELE FARIA 102 ANOS

Meu sogro, que foi um pai para mim, completaria nesta semana, se vivo estivesse, 102 anos de vida. Parece que não entendia porque se dá tanta importância às datas redondas (50, 100, 150, etc.). Certa feita, vendo uma reportagem sobre os 500 anos de algo ele me perguntou se 500 era diferente de 499 anos ou 501 anos. Podia ter escrito algo sobre ele quando faria 100 anos, mas, por respeito a isto, deixei para mais tarde.
Ele era uma pessoa especial. Tão especial que quero transcrever aqui o que recebi de uma jovem da Igreja Menonita, que ele frequentava. Seu nome é May Euzébio.
“No primeiro domingo do mês é sempre o domingo de celebrar a ceia na Igreja que frequento. Um momento simbólico, onde juntos tomamos o cálice de suco de uva, no lugar do vinho, e repartimos o pão, símbolos do sangue e corpo de Cristo, vertido e partido por todos nós.
Hoje, durante essa celebração, algo diferente me ocorreu. Eu segurava o cálice e o pão, e os olhava de uma forma como há muito não olhava. Meu coração encheu-se de uma nostalgia, de forma que cada recanto de mim foi inundado de saudade. A saudade tinha nome: "Seu Leone”. Descobri que meu olhar naquele momento era aquele com o qual eu olhava para a Ceia quando criança. Era o olhar novamente de uma criança!
Lembrei-me de que, quando pequena, após a Ceia dos adultos, as crianças eram convidadas a ir ao salão social da Igreja, aprender sobre a Santa Ceia e participar de uma forma simbólica. Foi deste jeito que, desde criança, ouvi sobre o sacrifício de amor incrível que Jesus fez por mim.
Seu Leone foi o primeiro, e por muito tempo o único, a levar as crianças para a Ceia, explicar cada elemento, cada significado e, com muito amor, orar por todos nós. Quanta gratidão, senti hoje ao tomar a Santa Ceia! Como foi importante para mim, ouvir na minha infância, sobre o sacrifício de amor do meu Jesus!
Foi aquele senhorzinho, humilde e dono de uma alma linda que, por tanto amor à Palavra e aos pequeninos da Igreja, me permitiu conhecer e experimentar o amor do nosso Deus. Quanta gratidão eu senti por aquele homem! Quanta vontade de abraçá-lo e agradecê-lo. Hoje ele descansa nos braços do Pai. O que pude fazer foi fechar meus olhos, diante do pão e do cálice, e agradecer com todo o meu ser, sabendo que a Eternidade me espera, e que um dia eu poderei dizer tudo isso olhando nos olhos tão amorosos do "Seu" Leone.” (May Euzébio)
Ele nunca pediu autorização para fazer isto. Não acredito que a igreja o tenha autorizado, mesmo porque ele o fazia de forma tão espontânea e sincera que seria crueldade impedi-lo.
Eu também sinto saudades dele. Muitas vezes, quando nos sentamos à mesa no espaço da casa que era sua cozinha, lembro da música: “nesta mesa está faltando ele e a saudade dele está doendo em mim”. Saudades das suas piadas, do seu jeito meigo e às vezes duro, saudades das gozações que fazia com ele porque era são-paulino e eu corintiano. Saudades de uma pessoa especial e que soube ser especial para mim e para muito mais gente.
Marcos Inhauser

quarta-feira, 4 de janeiro de 2017

ESPERANÇA SOLIDÁRIA

Se há uma coisa que todos temos na virada deste ano é a esperança. É verdade que toda regra tem sua exceção e a chacina em Campinas foi a ação de um desesperançado.
Depois de um ano cheio de sobressaltos e apertos, muita gente querida morrendo, nada mais lógico e natural que querer de que este novo ano nos dê a esperança de que será melhor. No entanto, a esperança é subversiva. Ela faz uma crítica ao presente e pensa o amanhã diferente. Ao questionar o presente, os que dele tiram seu proveito, especialmente pelas vias escusas da propina e corrupção, se sentem ameaçados. Usam dos meios que dispõem para preservar o status quo, seja promulgando leis que só atendem aos seus interesses ou prolatando sentenças monocromáticas que permitem a um preso sair da cadeia para tomar posse como prefeito ou vereador.
Se a sociedade permanece alienada e não reage a estas situações, por melhores e mais bem fundadas que sejam suas esperanças, elas se tornarão em desesperança a curto prazo. Para que a esperança prospere, temos que levar em conta que os atos de esperança não estão fundados na análise dos passos pretéritos, no que fiz ou fizemos ontem. O que move para a concretização é a visão do futuro, a qual gera a dinâmica de atuação no presente. É a u-topós que se busca, no melhor sentido do ainda-não-dado, a utopia.
Por paradoxal que possa parecer, são os que mais sentiram a desesperança os que têm maior força e vitalidade na construção da esperança. Ela não é construída pelos que estão acomodados com o presente, pelos abonados ou alienados. Só os que sentiram na carne a fome, a injustiça, a opressão, a malandragem, a extorsão, podem dar musculatura e ossos à esperança. Conservadores não têm esperança porque ela é o amanhã e eles só querem preservar o hoje. Conservadores estão contentes com o que têm, mas os desesperançados não querem continuar a viver nesta condição. Daí a semente da esperança e da u-topia.
A esperança nasce do discurso que contagia. Não pode ser solitária, mas coletiva e a transformação do solitário em coletivo se dá pela pregação do sonho. Só sonhamos o amanhã quando, ao trocar ideias sobre o presente e analisar em conjunto, em um processo de hermenêutica comunitária do presente, nos damos conta de que precisa ser mudado e o amanhã sonhado e construído. Esperança solitária é planta que nasce e morre com o primeiro sol. A esperança solidária é árvore que sobrevive às intempéries.
A esperança solidária é dinâmica na medida em que é processual, porque é construída na caminhada. Uma esperança rígida nos seus detalhes é suicida. Talvez este tenha sido o erro de Marx e muitos marxistas. O futuro tinha que ser só do jeito que sonharam.
Um dos problemas com os cristãos é que eles têm sua esperança engessada: sabem com detalhes como será o amanhã, se há tribulação antes, no meio ou depois, se vão viver no céu ou na Jerusalém celestial, se vão reconhecer amigos na eternidade, se vão cantar hinos ou morar em palacetes. A esperança de muitos é “sair-deste-mundo”, mas se esquecem que o mandato de Jesus é “ir-ao-mundo” para ser sal da terra e luz do mundo. Na oração do Pai Nosso nos ensinou a pedir “venha o Teu reino”, mas muitos oram “leva-me para o Teu Reino”.
Como cristãos vivemos entre-mundos: o paraíso perdido e a morada futura. Voltar ao passado é suicídio, porque impossível. Viver o presente é suicídio porque opressivo e injusto. Sonhar e construir o futuro, mudando hoje a mim e ao meu entorno é vida. Não haverá amanhã se todos os dias continuo igual.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

DETESTO FINAL DE ANO

Nunca acreditei na mágica que a passagem de 31 de dezembro para 01 de janeiro tivesse o condão de mudar as coisas. Também nunca acreditei que pular sete ondas, vestir-se de branco, tomar champanhe, abraçar amigos e desejar e receber os desejos de um feliz ano novo tivessem a capacidade de alterar os fatos e a trajetória da história. Se quantidade de ano próspero fizesse alguma coisa, teria a fortuna de um ex-presidente!
Posso parecer meio fatalista, mas eu me acho mais realista que fatalista.
Creio, no entanto, que a nossa vida e estrutura mental precisam de descansos em intervalos regulares, bem assim de recomeços, como para alimentar a possibilidade de se fazer as coisas de forma diferente para se ter a coisa diferente.
Mas o que mais me entendia nos finais de anos é a mesmice: programas de televisão abusam das retrospectivas, bem assim as rádios e revistas. Os jornais também não fogem à regra de recontar o que aconteceu. E lá vem o desfilar das mesmas coisas vistas durante o ano e agora revistas em tudo quanto é canto. Todo final de ano é o show do Roberto Carlos, cantando as mesmas músicas, as mesmas notícias da queima de fogos em todas as partes e gente saltando de alegria, embalados etilicamente.
Também me irrita a profusão de futurólogos, sejam eles que nome tenham. No que pese a quantidade de desatinos que já disseram e a ínfima margem de acerto que alguns tiveram (por pura sorte e nunca por premonição), estão os tarólogos, astrólogos, leitores de mapas astrais, de planilhas eletrônicas, dedados das bolsas,videntes, leitores dos búzios e quejandas. Cada qual fala o que quer, adequada à audiência. No planejamento das “vidências” sempre trazem a morte de um famoso ou a vitória disto ou daquilo, mas nunca o fazem de forma explícita, mas em linguagem hermética, monossilábica, possível de várias interpretações. É a revelação elada para que cada qual entenda como quiser e todos se sintam revelados. E se estabelece a competição entre os videntes para saber quem vai dizer a coisa mais espetaculosa. Babaquices que a mídia amplifica nos finais de ano.
Outra classe de videntes, estes com ares de profissionais da exatidão, são os economistas. Entra ano, sai ano e eles chutam mais que centroavante de time de fazenda. Como poucos vão se dar ao trabalho de, hoje, verificar o que disseram lá em 2015, se sentem no direito e dever de continuar chutando seus números e cálculos. Impressiona-me a precisão deles: a inflação será de 4,07, e não 4,08 como estão dizendo! O dólar, em dezembro de 2017 estará na casa dos R$ 3,48897! O crescimento do PIB será 0,002 superior ao que espera o Banco Central!
Incluo aqui os comentaristas de esportes, notadamente os de futebol. Antes mesmo de saber quem vai jogar em qual time, quais as condições desta ou daquela equipe, já afirmam categoricamente que o time X é forte candidato ao título. Quem é forte candidato ao título de embusteiro midiático são estes comentaristas-videntes.
Depois de um 2016 ciclotímico, que nos deu alegrais e depressões no mesmo dia, que prendeu gente que queríamos ver presas e deixou corrupto desobedecer ordem judicial sem nada acontecer, nada mais lógico que os políticos, notadamente o Temer, venham dizer que 2017 será melhor. Todos queremos que melhore. Mas melhorará se colocarmos a mão na massa, trabalharmos e apoiarmos quem anda dando um basta à corrupção. Não se precisa de videntes ou economistas para isto!
Marcos Inhauser

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

DO CRISTO NASCIDO AO PREGADO

Para quem não é fundamentalista não é difícil aceitar que os evangelhos não são diários da vida de Jesus, ao estilo de notícia de jornal, nem mesmo uma narrativa feita com o correr dos dias. Sabe-se hoje (com muita probabilidade de acerto) que nem mesmo circulou um relato escrito sobre a vida e milagres de Jesus enquanto o mesmo viveu. Aceita-se hoje que houve dois documentos que serviram de base para os evangelhos: a Logia Jesu e o Proto-Marcos, a primeira contendo as frases de Jesus e o segundo os milagres. Estes dois serviram de consulta e material para que Marcos escrevesse seu evangelho, que foi o primeiro a ser escrito. Baseado em Marcos, Logia e Proto-Marcos, Mateus e Lucas escreveram os seus relatos.
No entanto há uma coisa comum a todos os evangelhos e a toda a teologia neotestamentária: Jesus nasceu e viveu sem pompa, sem alarde, de forma humilde, filho de família pobre, que trabalhava arduamente para seu sustento, como era comum em um país dominado pelo império. No dizer de Jesus, ele não tinha onde reclinar sua cabeça. Viveu das ofertas dadas e guardadas sob a custódia de Judas, que se mostrou um ladrão. Para a última Ceia teve um local emprestado. Para sua sepultura, teve um túmulo cedido porque sua família não o tinha.
Comeu com pecadores e foi criticado por isto. Recebeu prostitutas e coletores de impostos, mas, ao que se saiba, nunca disseram que os apoiava ou deles recebia algo. Quem lhe prometeu prosperidade foi aquele que, na tentação, lhe disse: “Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares” (Mt 4:9). Ele mesmo nunca prometeu riquezas, antes, pelo contrário, disse que “neste mundo teríamos aflições”. Não prometeu sucesso, mesmo porque o discipulado é custoso.
Nunca se soube que tenha recebido uma oferta de R$ 100.000,00 por uma oração feita, nem que tenha feito ou publicado algo para vender como forma de arrecadação para seu ministério. Quando foi preso, não teve um ataque histérico dizendo que era malandragem, molecagem, nem falou pelos cotovelos. Diante de Pilatos e de sua pergunta, se limitou a dizer; “tu o dizes”, ainda que a afirmação fosse verdadeira. “Como ovelha muda foi levado ao matadouro”, para usar as palavras do profeta Isaias.
Não era afeito às multidões, antes buscava o lugar ermo, solitário. É verdade que teve multidões para ouvi-lo, não porque fizesse campanhas, cruzadas, novenas ou semana da oração milagrosa. Não frequentou palácios, nem mesmo para orar pelos governantes. Esteve em um momento político e econômico delicado para a nação de Israel, mas, com exceção da frase “diga àquela raposa que eu expulso demônios” dirigida a Herodes, não foi sua pregação eivada de crítica ou de propostas salvadoras. Sua vida era uma mensagem porque vivida com o povo, atendendo suas necessidades e não voando em jatos particulares, frequentando sets de televisão ou debaixo de holofotes. Não foi amigo de poderosos, nem mesmo do sumo sacerdote ou outros religiosos. Antes denunciou a prática religiosa deles e dos fariseus, escribas e doutores da lei.
Não aceitou o título de Mestre, Rabi ou seja lá o que for. A si mesmo se chamou de Filho do homem, um título mais para pejorativo que para elogioso.
Nasceu na manjedoura e morreu na cruz. Viveu sem ter onde reclinar a cabeça. Foi acusado injustamente e não se defendeu histrionicamente.
Neste Advento, que esta humildade, singeleza, desprovimento, nos dê parâmetros para avaliar o que anda acontecendo no universo religioso brasileiro e para vivermos o seu ensinamento: “amarás ao Senhor teu Deus sobre todas as coisas e ao teu próximo como a ti mesmo”.

Marcos Inhauser

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

PMDBrecht

Uma empresa é composta de uma diretoria e alguns departamentos, tais como comercial, financeiro e operacional. No caso de uma construtora, há ainda o de engenharia e um de execução das obras contratadas. Os nomes para estes departamentos podem variar e a quantidade pode aumentar, à medida que os negócios evoluem. No caso de uma construtora com obras em outros países, espera-se que haja um departamento dedicado às obras em solo nacional e outro que cuide das obras no exterior.
Nas recentes revelações sobre o funcionamento da Odebrecht, não só havia os que acima mencionei (os nomes podem variar), mas, sabe-se que havia um Departamento de Operações Estruturadas, nome pomposo para o departamento que cuidava de azeitar a máquina, pagando propina aos mais diferentes agentes públicos. Para nós que estamos de fora das investigações e nos inteiramos dos fatos à medida que são trazidos à tona pela mídia, já estávamos assustados e pasmos com a facilidade com que a empresa destinava milhões para este ou aquele político.
Com a revelação de que 77 executivos e ex-funcionários da empresa estavam firmando uma delação premiada, confesso que me assustei e me perguntei: como pode ter 77 altos funcionários na maracutaia? Era este o valor maior da empresa: negócios conseguidos via azeitadas milionárias?
No final da semana passada ficamos sabendo que a Odebrecht tinha outro Departamento: o de Operações Legislativas, onde políticos graduados, como se empregados assalariados da empresa fossem, atuavam na Câmara e no Senado para fabricar leis, isenções, empréstimos e quejandas, sempre atendendo aos interesses do empregador. Não se exagera ao dizer que a empresa “comprava” eleições de pessoas confiáveis que garantiam a contrapartida, como também governava o país a seu interesse. Agora, de forma mais clara, dá para entender a transfiguração da lei anticorrupção feita pela Câmara e a pressa do campeão mundial de investigações, o Renan em aprovar a lei de abuso de autoridade que, na verdade, é uma lei de tapa-boca.
Com estas revelações se consolida uma antiga convicção minha: a eleição via marqueteiro e exposição midiática é um atentado à democracia. Ela explica as eleições do Tiririca,  Russomano, Agnaldo Timóteo, Moacir Franco. Mas, mais do que isto, elege o Kassab, Paulinho da Força, Pimentel, Geddel, Eliseu Padilha, Moreira Franco, Jucá, Lobão, Collor, Cabral, Pezão, Paes, entre tantos outros. Por que os políticos são os maiores detentores de concessões de rádios e televisão neste país? Uma eleição na base do voto distrital misto muito contribuiria para acabar com esta distorção.
Por outro lado, isto nos leva a prestar, mais do que nunca, atenção no que fazem estes funcionários de empresas, alocados no legislativo, Tribunais de Contas e Judiciário. Fatos recentes corroboram o que acabo de dizer. Isenções para tráfego interestadual de mercadorias, redução de IPI, facilidades de acesso a créditos subsidiados, viagens internacionais da presidência para alavancar negócios, Fundo Partidário, CARF, são mofos onde prosperam as bactérias políticas e apaniguadas da podridão.
Por mais “saudável” e “transparente” que possa parecer uma emenda, decisão, sentença, Medida Provisória, é bastante provável que haja um interesse escuso no bojo delas.
Diante disto, não posso deixar de perguntar: o que estaria por trás de decisão de manter o executivo-mor da Odebrecht no Legislativo, Renan? Quanto custou o impeachment da Dilma para colocar na presidência o confiável Temer? Quanto custou a demora de sete anos para que se tornasse réu em uma das muitas investigações que sobre ele pesam? Quanto custa aos interessados, a demora em investigar e denunciar muitos dos acusados, como, por exemplo, Jucá, Padilha, André Moura, Serra, Alckmin, Wagner, Mercadante, etc.?
Só me vem à mente uma frase bíblica atribuída a Jesus: pode a árvore má produzir bons frutos? Pode o Temer e o PMDB fazer algo sem estar com o DNA que os têm caraterizado?
Marcos Inhauser


quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

RECEPTADORES LEGALIZADOS?

O Código Penal, no seu Art. 180, define a receptação como “adquirir, receber, transportar, conduzir ou ocultar, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabe ser produto de crime, ou influir para que terceiro, de boa-fé, a adquira, receba ou oculte”
Em outras palavras, se recebo, compro ou tenho vantagem com o produto de um crime, ainda que não praticado por mim, sou receptador e, por tanto, passível de condenação.
Agora, por que não são considerados receptadores os advogados que defendem os criminosos da Lava Jato, Carf, PCC, CV e outras organizações, que estão recebendo honorários milionários, pagos com dinheiro produto de crime? Não estão eles se beneficiando de algo que sabem é corrupção, roubo, peculato, etc? Por que o que se paga a eles é isento de punição?
Isto é ainda mais grave quando o parágrafo 6º do mesmo artigo, estabelece que: “tratando-se de bens e instalações do patrimônio da União, Estado, Município, empresa concessionária de serviços públicos ou sociedade de economia mista, a pena prevista no caput deste artigo aplica-se em dobro”. Se o que estes advogados regiamente pagãos recebem é fruto do que seus clientes roubaram dos governos federal, estaduais e municipais, da Petrobrás, do Metrô, do Comitê Olímpico, da Funasa, etc. por que não estão incursos nos parâmetros da retro mencionada lei?
Que me perdoem os doutos, mas qual a diferença entre o dono de um desmanche que pega um carro roubado, separa as peças e as vende e assim tira proveito de um crime e um que, ainda que não seja dono de um ferro velho, recebe um criminoso, dá-lhe uma maquiada conceitual no crime e ganha horrores com a plástica feita? Qual a diferença com os que fizeram as 78 cirurgias plásticas no colombiano Abadia, traficante de drogas, como forma de despistar a polícia? O dinheiro que ganharam era dinheiro de crime e usado para que escapasse da justiça.
Conheço o caso da esposa de um alto funcionário governamental de um determinado país. O marido, com as devidas anuências e cumplicidade da esposa, ganhou milhões de dólares. Como a chapa estava esquentando, ela contratou professora particular para a filha, empregadas para a casa, motoristas particulares e pagou salários altíssimos. O acordo era que, se acontecesse alguma coisa com ela, eles se encarregassem de pagar as contas da filha na escola e cuidassem dela.
Quando a coisa estourou, não só deram busca na casa da autoridade e o prenderam, bem assim sua esposa, como na casa de todos os amigos e funcionários e pegaram tudo que tivessem e que foi dado pelo casal.
A questão dos salários não veio à tona. Mas como a filha continuava a frequentar a mesma escola caríssima, a polícia foi investigar quem estava pagando e como estava pagando. Sobrou para eles também.
Aqui no Brasil, o Sérgio Machado não continua a morar na mesma casa, com todas as mordomias? O Lula está pagando uma penca de advogados com o dinheiro dos seus proventos? Como o Palloci está pagando os muitos que o defendem? Como estão sendo pagos os advogados do Vaccari? E os do Cerveró, Duque, Barusco, Pedro Correia e outros mais?
Que me expliquem os entendidos: é isto legal? É isto justo? É isto honesto? É isto receptação legalizada?
Na minha cabeça, confesso, há um nó. Não entendo e quero entender. Quem puder, me ajude com explicações plausíveis.

Marcos Inhauser