Quando se olha para os textos bíblicos que compõem o Antigo
Testamento, pode-se fazê-lo de duas óticas: a tradicionalista e a
instrumentalizada. Pela primeira, nos impingem premissas que a tradição repete
até que pareça ser verdade. Exemplo disto é afirmar que os cinco primeiros
livros da Bíblia, o Pentateuco, foram escritos por Moisés; que Isaías pertencia
à corte; que a maior parte dos Salmos foram escritos pelo rei Davi, que
Habacuque era sacerdote; Samuel é o autor dos livros a ele atribuídos, etc.
Percebe-se uma nítida tendência de atribuir a autoria dos textos a
personalidades do mundo antigo, gente ligada à corte (Moisés, Davi e Isaías),
ou ao templo (Habacuque e Samuel).
A leitura instrumentalizada pelas descobertas arqueológicas,
pelos fragmentos de escritos tanto em cerâmicas como pedras e papiros, desenhos
feitos em cavernas ou nos palácios, a história comparada, a análise dos estilos
e o vocabulário empregado nos escritos vários, mostram que a autoria dos textos
bíblicos é bem mais complicada e difícil de se precisar. Já perguntei a muita
gente que defende a autoria mosaica do pentateuco como poderia ter Moisés
escrito em hebraico lá pelo século XIII aC, se os mais antigos textos com
alguma palavra que talvez se possa atribuir ao hebraico são datadas no século
X? Teria ele escrito em uma língua ainda inexistente? Um dos defensores, diante
da pergunta, me respondeu que o “Espírito Santo o capacitou com o dom de uma
língua que um dia apareceria”. Por que não se atribui nenhum trecho à autoria
de uma mulher, mesmo que se tenha o cântico de Rebeca? Poderia um homem
escrever com a fineza e a qualidade dos sentimentos femininos que estão
presentes na história de Sara e Hagar e especialmente no encontro desta última
com um anjo que a manda de volta para a casa de Abraão?
Como pôde Davi escrever tantos salmos para serem cantados no
templo se em seu tempo ele não existia e, mesmo que quisesse construí-lo, foi
seu filho, Salomão, que o construiu? Como podia ter dados ordens para se cantar
com a melodia tal ou ao som de oitava, se o serviço religioso foi estabelecido
mais tarde?
Quando se examina com mais imparcialidade e menos fervor
religioso pré-concebido, percebe-se que o Antigo Testamento é uma coletânea de
textos, escrito por uma multidão de autores que transmitiram o que ouviram e
viram milhares de vezes, ao ponto de se tornar um texto de produção coletiva. A
teologia do Antigo Testamento foi obra de um trabalho comunitário, de uma
hermenêutica nacional, contando e recontando suas histórias e adaptando-as a
cada momento que viviam. A fixação por escrito dos relatos orais se deu
tardiamente. Exemplo disto é o livro de Jó, hoje reconhecida por muitos como
obra teatral e não relato histórico sobre um personagem real. Em Jó estamos
todos os que sofremos, que perdemos bens e família, que fomos falsamente
consolados pelos amigos, que fomos acusados por quem nos dizia que nos queria
ajudar.
Pela quantidade de denúncias que os textos fazem dos
governantes e sacerdotes, da corrupção reinante nos juízos que exploravam e
tomavam as propriedades aos mais pobres, pode-se concluir, com grande margem de
acerto, que os que transmitiam oralmente as mensagens, especialmente as
proféticas, e quem as redigiu, não era gente da corte, do templo ou dos
tribunais. Era gente que estava sofrendo as agruras e que via nas mensagens a
sua voz e angústia expressadas.
Tudo leva a crer que a teologia do Antigo Testamento é a
feita pelos sem-poder, sem-notoriedade, gente sofrida, explorada, escravizada.
Por isto, e com propriedade, é que se diz que a Bíblia é a memória dos pobres.
Marcos Inhauser
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